O IMPÉRIO PORTUGUÊS, O BRASIL E O RACISMO: UMA ANTÍTESE DOS ERROS PROTESTANTES?

A Redenção de Cã (1895), do pintor espanhol Modesto Brocos y Gomes.

Graças à infiltração proselitista do Catolicismo Romano nas filhas desgarradas da antiga Direita Brasileira — do conservadorismo esnobe ao autointitulado tradicionalismo católico —, o "movimento conservador de alta cultura" tão sonhado por Olavo de Carvalho provou-se terreno fértil para uma tendência apologética tão improvável quanto questionável: o uso da História do Brasil como propaganda antiprotestante e pró-católica [i].

À despeito da sua inviabilidade, tão autoevidente no passado, essa pauta tem ganhado força nos últimos anos graças à progressiva desconexão com a realidade do conservadorismo digital, permitindo a idealização de um passado conhecido apenas por um remoto senso comum. 

O maior fruto desse esforço é a crença de que o racismo, mais fraco no Brasil Moderno do que nos EUA Moderno, não tem relação primária com o tipo de colonização que ambos os países sofreram — como inclusive é abordado na historiografia acadêmica que por algum motivo lhes é desconhecida , mas com a religião dos colonizadores. "O Brasil", dizem, "não é racista porque foi colonizado por católicos, países protestantes como os EUA são racistas por causa da colonização protestante" [ii].

À despeito do reducionismo e das próprias discordâncias internas dos adeptos desta espécie necrológica de tropicalismo — uma parcela de negacionistas mais flexíveis ao menos admite a realidade de um racismo "recente", tão somente para culpar os EUA por ter "criado" os racistas brasileiros através de uma suposta influência cultural via Americanismo —, o assunto nunca recebeu uma resposta apropriadamente historiográfica. Existem motivos para essa inércia: a Academia está distante desses guetos ideológicos — que por sua vez realmente apreciam essa distância, por poderem divulgar suas ideias sem o inconveniente das revisões dos especialistas e de possíveis retratações públicas —, gerando em grande parte um desconhecimento profissional do fenômeno; os pouquíssimos cientes apenas pensam que tais proposições são estúpidas e caricatas demais para se levar a sério e justificar o esforço em respondê-las.

O que propomos aqui, ao contrário do que o tropicalismo, o integralismo e os mitos de formação nacional defendem, é que o Império Português, e consequentemente o Brasil, tiveram, de fato, uma construção social racista; e que, naturalmente, não poderia ser atribuída à um fenômeno forasteiro e desconhecido da realidade brasileira. Sendo mais óbvio, os brasileiros não "aprenderam a ser racistas" com os estadunidenses.

De fato, é conhecido para os especialistas que a nossa construção racista se desenvolveu antes, e, em certos aspectos, era mais segregatória que a dos próprios britânicos. 

"O Império Português, rígido, ortodoxo, decadente, a apodrecer como uma antiga ruína no calor tropical, subsistiu pela inércia. Na turbulência dos tempos modernos, encontrou apologistas que pensaram ter descoberto nele características mais liberais do que as dos outros grandes impérios mais florescentes. O Império podia estar moribundo, decadente e corrupto, mas, pelo menos, não alimentava preconceitos raciais. Os historiadores citavam orgulhosamente a mistura de raças no Brasil, os seminaristas de cor em Goa e a felicidade doméstica dos oficiais portugueses dando livre curso a sua lascívia em zonas do interior de Moçambique e Angola. E o grande historiador brasileiro Gilberto Freyre ajudou a consolidar esta lenda no seu belo livro acerca da escravatura no Brasil; mas o Professor Boxer mostra quão falsa é esta crença. A documentação que utiliza é imensa e conclusiva. Os Portugueses eram extremamente racistas em África, em Goa e no Brasil. [...]. Isto é um facto, não uma condenação moral: a atitude do resto da Europa, da África, da Ásia, dos povos fixados na América, diferia muito pouco a este respeito. [...] A grande e única diferença entre a Europa, de que Portugal foi o precursor, e o mundo por ela escravizado, era a intensa certeza e exclusividade das convicções religiosas – catolicismo ou protestantismo. Nalguns homens, como, por exemplo, em São Francisco Xavier, a cobiça pelas almas era tão ávida como a cobiça pelo ouro e especiarias em Vasco da Gama; assim, matar os que não se queriam converter, castigar os pagãos, estava igualmente correto: as outras raças eram inferiores, a escravidão era, para elas, uma medida justa." [1].



COMO PORTUGAL E O CATOLICISMO ROMANO FORMARAM O SISTEMA DE ESCRAVATURA NEGREIRA


Na tentativa de justificar e isentar a Igreja Romana da escravidão transatlântica, apologistas brasileiros procuram de um lado distorcer as bulas papais mais conhecidas sobre o assunto e outro omitir de fatos históricos básicos [iii]. Muito da sua argumentação é imediatamente derrubada pela constatação de que a escravidão nunca foi abolida ou abandonada na Península Ibérica Medieval [iv], sendo o tráfico negreiro uma nova fase de uma tradição intrínseca e já anteriormente aprovada e praticada pela Igreja [v]

"Com a expansão portuguesa na África Ocidental durante o século XV, mercadores ibéricos começaram a reconhecer o potencial econômico de um tráfico escravocrata de larga escala. Um dos primeiros a registrar este sentimento, de acordo com cronista real português Gomes Eanes de Zurara, foi um jovem capitão de navio chamado Antam Gonçalvez, que navegou para a África Ocidental em 1441 na esperança de adquirir peles de foca e óleo. Depois de obter sua carga, Gonçalvez convocou uma reunião dos vinte e um marinheiros que o acompanhavam e revelou seu plano para aumentar seus lucros. Segundo Zurara, Gonçalvez disse à sua tripulação, 'já temos a nossa carga, mas quão agradável seria se nós, que viemos a esta terra para carregar tão mesquinha mercadoria, tivéssemos sorte e trouxéssemos os primeiros cativos diante do nosso príncipe?' Naquela noite, Gonçalvez liderou um grupo de ataque a Cap Blanc, uma estreita península entre o Saara Ocidental e a Mauritânia, e sequestrou dois berberes, um homem e uma mulher. Outro marinheiro português, Nuno Tristão, e membros da sua tripulação logo juntaram-se a Gonçalvez. Embora a incursão tenha resultado em menos de uma dúzia de cativos, Zurara imagina no seu relato que o príncipe Henrique de Portugal respondeu a esta empreitada com 'alegria, não tanto pelo número de cativos levados, mas pela perspectiva de outros [incontáveis] cativos que poderia ser tomados.'
[...]
Notavelmente, o tratamento dos “gentios negros” foi abordado em 1452 e 1455, quando o Papa Nicolau V emitiu uma série de bulas papais que concediam a Portugal o direito de escravizar os africanos subsaarianos. Os líderes da Igreja argumentavam que a escravidão servia como um impedimento natural e uma influência cristianizadora para o comportamento “bárbaro” entre os pagãos. Usando esta lógica, o Papa deu um mandato ao rei português, Afonso V, e o instruiu:

.... a invadir, procurar, capturar, derrotar e subjugar todos os sarracenos e pagãos de qualquer espécie … [e] reduzir suas pessoas à escravidão perpétua, e usar e apropriar-se para si e para seus sucessores dos reinos, ducados, condados, principados, domínios, posses e bens, e convertê-los para seu uso e lucro ...

Embora a bula papal mencione 'invadir' e 'subjugar' os povos africanos, nenhuma nação européia estava disposta ou capaz de colocar um exército na África Ocidental até a colonização portuguesa de Angola mais de um século depois (e mesmo assim, as forças portuguesas receberam ampla ajuda de exércitos de Imbangala ou mercenários 'Jaga'). As primeiras incursões, como a de Gonçalvez e Tristão em 1441, eram invulgares, e talvez só tenham sido possíveis porque os portugueses nunca tinham feito incursões ao sul do Cabo Bojador. Os marinheiros portugueses logo aprenderam que os habitantes ao longo da costa da Alta Guiné eram mais do que capazes de se defender de tais incursões. Pouco depois de sua viagem de 1441, Tristão e a maior parte de sua tripulação foram mortos na costa do atual Senegal." [2]


Entre 1450 e 1500, após a aprovação solene do Papado, "cerca de 150.000 escravos negros foram provavelmente capturados pelos portugueses" [3].

Uma movimentação humana desta magnitude, para a realidade desta época, corresponderia a 60% de toda a população de Paris, a maior cidade católica naqueles tempos. Nenhuma outra metrópole europeia da época, mesmo com séculos de desenvolvimento urbano e afluente comércio, era capaz de ultrapassar o marco de 125 mil habitantes. É mérito de Portugal, um pequeno e despovoado país ibérico que flutuava entre 750 mil e 1,5 milhão de habitantes, o translado de tão grande número de pessoas; se considerarmos a população da Lisboa pré-expansão como 50 mil, é como se Portugal pudesse construir três versões da sua maior cidade apenas com escravos negros, tudo isso em um curto intervalo de menos de duas gerações. E vale lembrar, a partir do século XVI, Portugal também se envolveu no escravismo de outras etnias, principalmente chinesa e japonesa, que não deixou de causar um impacto social negativo nessas regiões.

"Depois de 1442, o desenvolvimento do comércio de escravos ajudou, também, a financiar os custos das viagens portuguesas ao longo da costa ocidental africana. Os escravos provinham, originariamente, dos ataques aos acampamentos tuaregues do litoral sariano, e, posteriormente, às aldeias negras da região senegalesa. Estes ataques, dirigidos muitas vezes contra grupos de famílias desarmadas ou contra aldeias indefesas, eram descritos pelos cronistas da corte, como Gomes Eanes de Zuarara, como feitos de heroicidade cavaleirescas, comparáveis aos realizados nos campos de batalha europeus – e, de facto, eram assim considerados pela grande maioria dos contemporâneos. Numa determinada altura, os portugueses fizeram algumas investidas, para obter escravos, contra os Guanches Berberes das Canarias e foram acusados pelo papado de escravizar os que já se tinham convertido ao Cristianismo. Mas, depois de alguns anos de contacto com as populações negras da Sangâmbia e da Alta Guiné, os portugueses compreenderam que podiam obter escravos muito mais facilmente através da troca pacífica com os chefes e mercadores locais. Nunca faltaram, naquele tempo e mais tarde, africanos dispostos a vender os seus semelhantes." [3]

A partir do pioneirismo português, outras nações católicas aderiram ao comércio de negros, e, mais tardiamente, as nações protestantes da Holanda (1596) e Inglaterra (1619); curiosamente, com resistência inicial e desdém pela prática, ao contrário da prática católica.

Não venho aqui desmerecer o fato de que a escravidão de negros feita por protestantes tenha sido desumana, porque de fato foi. Não obstante, ao levarmos em consideração a tese de que o racismo é fruto de uma matriz religiosa protestante e não católica, surge a necessidade de falsear essa alegação nas fontes históricas, de toda a história da colonização, no trato dessas populações conquistadas e/ou escravizadas. Não basta apenas que os "portugueses não tenham sido piores que os ingleses", é necessário uma superioridade geral, em qualquer caso, de todas nações católicas em comparação com as nações protestantes desde o início da colonização europeia, tendo um foco especial nas raízes do problema histórico, que são a escravidão e os primeiros séculos de colonização. São importantíssimos os casos em que existe compatibilidade de época e localidade, como é o caso do Nordeste Brasileiro do século XVII.


DO TRATAMENTO AOS ESCRAVOS, ATÉ O RACISMO 


É contraditório que um colonizador racista, criador do próprio Racismo, trate o alvo de seu preconceito com mais "humanidade e sensibilidade" que os supostos criadores do paraíso racial. E é curioso como um fato tão estabelecido esteja completamente alheio à influenciadores conservadores e católicos.

Pode surpreender ao leitor mais leigo saber que era fato estabelecido entre os indigenas do Brasil que os holandeses tratavam estes melhor e com mais humanidade que os próprios portugueses. Curiosamente, a historiografia afirma que até no tratamento dos negros, mesmo com as mazelas da instituição escravocrata, os holandeses eram mais humanos com os negros que os católicos portugueses:

"É quase unânime, neste sentido, dentre os autores pesquisados, a insistência no trato humano que os neerlandeses dariam aos escravos. Boxer expõe que os portugueses admitiam que os holandeses tratavam os negros “com mais brandura e compreensão do que eles”, referindo-se a Angola. No tempo de Nassau especialmente, seria a atitude os holandeses “mais humana, mais sensível e mais profícua”. Nestes termos, Mello endossa: “[...] os holandeses, em geral, trataram os escravos com humanidade" [4].

 É difícil não ver uma continuidade entre o "tratamento mais severo e bruto" dos portugueses dos séculos XVI e XVII com os relatos chocantes de Charles Darwin no Brasil (1832):

“Perto do Rio de Janeiro, minha vizinha da frente era uma velha senhora que tinha umas tarraxas com que esmagava os dedos de suas escravas. Em uma casa onde estive antes, um jovem criado mulato era, todos os dias e a todo momento, insultado, golpeado e perseguido com um furor capaz de desencorajar até o mais inferior dos animais [...] Vi como um garotinho de seis ou sete anos de idade foi golpeado na cabeça com um chicote (antes que eu pudesse intervir) porque me havia servido um copo de água um pouco turva [...] E essas são coisas feitas por homens que afirmam amar ao próximo como a si mesmos, que acreditam em Deus, e que rezam para que Sua vontade seja feita na terra! O sangue ferve em nossas veias e nosso coração bate mais forte, ao pensarmos que nós, ingleses, e nossos descendentes americanos, com seu jactancioso grito em favor da liberdade, fomos e somos culpados desse enorme crime.” [5] 

É claro que a maioria dos católicos mais obstinados vão se focar apenas no inclusivismo que Darwin faz dos anglo-saxões, ignorando que ele o faz no sentido de englobar toda a escravidão como um mal e que, em todo o seu Viagem no Beagle, apenas a crueldade da escravidão luso-brasileira teve a necessidade de ser descrita em exemplos específicos; ao passo que as demais "crueldades" narradas ocorreram em "em uma colônia espanhola, onde sempre se dizia que os escravos eram melhor tratados lá do que com os portugueses, ingleses ou outras nações europeias" [6], o que, na visão do pesquisador, provou-se falso.


DADOS SOBRE ESCRAVOS


Indicadores estatísticos mais tardios como a expectativa de vida dos escravos no Brasil e nos EUA, o arquétipo da demonização revionista, nos indicam quão precária era a vida dos escravos negros aqui. Em 1879, a idade média de um escravo negro no Brasil era de 19 anos, ao passo que, nos EUA, a expectativa de vida dos escravos atingia uma marca muito melhor: 35 anos [7]. Isto significa dizer, além de uma diferença notória de condição, um escravo americano costumava viver até mais do que um homem livre no Brasil, cuja expectativa de vida era de 27 anos [7]

Uma das consequências da diferença gritante entre as expectativas de vida do escravo negro brasileiro e o americano era que, enquanto a comunidade escrava lá era composta por negros geralmente nascidos em solo americano e descendentes de americanos, a nossa comunidade era composta em grande parte por negros africanos récem-escravizados, que iam morrendo e sendo repostos continuamente [Y].

Curiosamente, isso não impediu os luso-brasileiros de manter, desde cedo, números abismais de pessoas escravizadas:

"O Brasil estava sendo cultivado pelo trabalho escravo muito antes da colonização de Jamestown, e ainda se vangloriava de ter hordas de escravos em suas plantações até um quarto de século após a Proclamação de Emancipação nos Estados Unidos ter sido emitida. Já em 1585, Pernambuco podia reivindicar 10 mil escravos africanos e a Bahia algo em torno de 3-4 mil, enquanto o primeiro carregamento de escravos para as colônias inglesas na América foi introduzido no porto de Jamestown por um navio holandês ainda em agosto de 1619.

[...]
Assim, por volta de 1800 toda uma metade da população brasileira de 3,2 milhões 
era escrava. Por volta de 1818 haviam 1,93 milhão de escravos e 0,526 milhão de mulatos e negros livres, totalizando 63% do total. Em meados do século XIX haviam cerca de 3 milhões de escravos de uma população de 7,5 milhões. Lorde Palmeston estimou o total de escravos na década de 1860 em 3 milhões, enquanto um escritor do 'Revue des deux Mondes' entre 2,5 e 4 milhões [...] Desnecessário dizer, escravos compunham facilmente de 40 a 50% da população
[...]
A Escravidão como nós conhecemos progrediu um pouco nas colônias do sul, e até à uma extensão insignificante nas colônias da Nova Inglaterra. O 'Asiento' em 1713, pelo qual a Grã-Bretanha no final da Guerra da Sucessão Espanhola garantiu o direito de fornecer às colônias da Espanha com 4.800 escravos anualmente, aumentando o comércio de escravos em todo o novo mundo. [...] Em 1710 havia apenas 50 mil escravos nos Estados Unidos, o número aumentou para 220.000 em 1750, para 464.000 em 1770,  até o ano de 1790 eram 697.624. Este número constituía um quinto da nossa população total. 

A escravidão, no entanto, não era uma instituição venerada no Sul oitocentista. Na verdade, foi bastante apoiado pela força do hábito e pelo medo dos resultados da [possível] emancipação. Então veio a invenção de Eli Whitney do descaroçador de algodão. O Sul enlouqueceu com o algodão. Os Estados Unidos tornaram-se agora o produtor mundial de algodão cru. A partir de então, a escravidão passou a ser considerada “o indispensável instrumento econômico da sociedade do sul". Na primeira metade do século XIX, então, os americanos a escravidão estava no auge. Em 1850, o número de escravos totalizou 3.204.313, cerca de alguns milhares a menos que o Brasil.
[...]
Quanto à extensão da escravidão nas duas nações, nos Estados Unidos a escravidão estava praticamente confinada ao semi-trópico sul, no interior, da linha Pensilvânia-Maryland e o rio Ohio [...] No Brasil existia a escravidão praticamente em todos os lugares onde os europeus se estabeleceram.
[...]
Resumindo a condição geral do escravo negro em ambas as terras, notamos que (1) a escravidão brasileira antecedeu e postulou a escravidão americana; (2) que havia um maior número de escravos e uma maior proporção da população total no Brasil do que na América; (3) que a escravidão brasileira recebeu seu ímpeto através do corte da oferta de mão de obra nativa e o crescimento da cultura açucareira; ao passo que a escravidão americana foi estimulada pela invenção do descaroçador de algodão" [X]


POLÍTICAS RACISTAS 

Seja na legislação, seja na sociedade, a colonização brasileira demonstrou construções racistas bem precocemente. Durante séculos, debates sobre se os índios eram "seres humanos ou animais" reuniram setores religiosos e científicos da sociedade luso-brasileira [8][9].


Negros, mesmo livres, não eram considerados cidadãos [9][10]. Mesmo quando o foram, até 1881, negros libertos ainda eram legalmente proibidos de votar [11]. Isso diz bastante sobre perspectivas racistas brasileiras quando, nos Estados Unidos, mesmo em pleno período de racismo científico, a lei constitucional americana, primeiro em 1868 e depois em 1870, reafirmava o direito dos negros ao voto, mesmo ex-escravos:

"O direito dos cidadãos dos Estados Unidos ao voto não será negado ou abreviado pelos Estados Unidos ou por qualquer estado em virtude da raça, cor ou condição prévia de servidão." (Fifteenth Amendment, 1870)

E embora estados do Sul tenham negado ilegalmente o acesso do negro ao seu direito de voto, ao menos, em nível federal e constitucional, tal direito existia, mesmo em um país racista. Como um país anti-racista como Brasil, como dizem os tropicalistas, era mais retrógrado que o país que eles mesmos identificam como racista estrutural? Certamente, existe uma contradição entre narrativa e fatos. Mas as coisas não acabam ai.

Legislações racistas governavam o Brasil Colônia. Na sociedade colonial, uma pequena minoria branca ocupava os melhores postos de trabalho e espaços honrosos da sociedade, enquanto a massa composta de negros, mestiços e índios viviam à margem de qualquer bem-estar social [12].

"Os portugueses e seus descendentes olhavam a si mesmos como os detentores da cultura, da ordem moral, da cristandade e da autoridade constituída" [12].

O Estatuto de Pureza de Sangue, aplicado nos Impérios Português e Espanhol para alienar católicos com a ancestralidade manchada por sangue marrano (lit. "sangue de porco", em referência a católicos descendentes de judeus), eventualmente foi aplicado a afrodescendentes. Para ocupar serviços públicos da Coroa, da municipalidade, do judiciário, nas igrejas e nas ordens religiosas era necessário comprovar "a brancura" e a pureza de sangue, de forma que negros e mestiços "dentro dos quatro graus em que o mulatismo é impedimento" [12] não poderiam sequer candidatar-se a estes ofícios. O processo de comprovação era burocrático, envolvendo "interrogatório de testemunhas, sindicâncias longas no Brasil e em Portugal" para atestar a "inquestionável origem branca e cristã-velha do indivíduo" [12].

Havia um conjunto de leis que proibia negros e mulatos de se "vestirem como brancos" [12], isto é, fazer uso de "seda ou lã fina e ostentar joias ou adornos de ouro e prata, sob pena de confisco" [12]. Em 1710, em Minas Gerais e São Paulo tornou-se proibido que negros, mulatos, índios carijós ou mestiços, livres ou libertos, pudessem portar espada ou arma de fogo, sob pena de açoitamento público no pelourinho [12]. Ironicamente, todos estes elementos eram vistos numa única demonstração de civilidade negra nos EUA naquela mesma época, as Eleições Negras:

"Vestidos em roupas brilhantes, a população negra da região se reunia e partia em procissão do centro da cidade aos arredores, então retornando algumas horas depois com música festiva e os estrondos dos disparos de armas de fogos para celebrar o seu novo rei e sua corte. Este rito anual não estava limitado a Portsmouth colonial: Salem, Boston, Providence, New Haven e pelo menos quatorze outras cidades da Nova Inglaterra, assim como outras colônias americanas, tinham sua comunidade negra elegendo um líder dentre os seus.
[...]
A população negra se reunia através da capital e de cidades vizinhas. Eles se vestiam com suas melhores roupas, geralmente preferindo cores brilhantes. O dia começava com uma procissão liderada pelo atual governador ou rei negro. Ele, seus oficiais ou corte (geralmente montados em cavalos e com espadas ropeiras) e a multidão seguia com música alegre e sons de tiro até o local das eleições" [13].
 
No fim das contas, se o Brasil nunca experimentou racismo, sendo os EUA a epítome do racismo estrutural, porque o que os negros daqui eram proibidos de fazer o que era habitual por lá?

No segundo reinado, por mais que a família real e o movimento abolicionista tenham garantido direitos aos escravos, até a completa abolição, o período imperial estava longe de ser um tempo de combate ao racismo. Entre as legislações anti-negras do período, destacam-se:

"A Tarifa Alves Branco (1844), que tinha um caráter protecionista ao início da industrialização, porém sua idealização foi projetada para absorção da mão-de-obra estrangeira assalariada, associada a política de desvalorização do trabalhador nacional negro e não branco.

 A Lei da Terra (1850), na qual a terra se tornou uma mercadoria de aquisição comercializada pelo Estado, que antes era seu proprietário as doava aos seus beneficiários. Politicamente, essa lei visava inviabilizar a possibilidade futura do ex-escravo integrar-se a sociedade produtiva via doação de terras aos egressos das senzalas e possibilitava que o trabalhador assalariado se transformasse em um pequeno proprietário. 
[...]
A política imigrantista, que visava resolver o problema da mão-de obra do trabalho livre com a importação de imigrantes, conservando os ex-escravos como uma massa marginalizada e tornando-os reserva de segunda categoria no mercado de trabalho industrial." [14]

O principal destaque do período entre os séculos XVIII e XIX, a Política de Branqueamento Racial delineou políticas migratórias com viés racialista:

"A mestiçagem tanto biológica quanto cultural teria, entre outras consequências, a destruição da identidade racial e étnica dos grupos dominados, ou seja o etnocídio. Por isso, a mestiçagem como etapa transitória no processo de branqueamento constitui peça central da ideologia racial brasileira, embora reconheçamos que todos os intercursos sexuais entre brancos e negros não foram sugeridos por essa ideologia." [15]

Essencialmente, seu propósito era dissolver as "raças" não-brancas, especialmente a negra, através de imigração européia massiva e miscigenação. 

"Supunha-se que era possível limitar eugenicamente os casamentos (privilegiando alguns e negando outros), incentivar a imigração de brancos em detrimento da imigração de outros grupos, e confiar na infalibilidade da evolução." [16]

Apoiada pela elite brasileira, por acadêmicos e até por médicos, a Tese do Branqueamento encontrou diversos defensores. Entre eles, o antropólogo e médico carioca João Baptista de Lacerda, que previa, por meio desta política "a completa extinção dos negros brasileiros por volta do ano de 2012" [17]

O artigo de Lacerda, “Sur les métis au Brésil” (Sobre os mestiços do Brasil), foi defendido no Congresso Universal das Raças, em Londres. Este congresso reuniu estudiosos da França, Inglaterra, Bélgica, Itália, Pérsia, Turquia, Egito, Japão, África do Sul, Hungria, Rússia, Haiti, Serra Leoa e Brasil [18]. O carioca apontava a miscigenação como algo positivo, mas não pelas razões que os revisionistas defendem. Nas palavras do próprio:

 “A população mista do Brasil deverá ter pois, no intervalo de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os elementos nos quais poderia persistir ainda alguns traços do negro.” [19].

Alguns fatores, como a queda no fluxo migratório europeu, frustaram a previsão de Lacerda e de outros eugenistas brasileiros. Ao contrário do que negacionistas poderiam apontar, Lacerda não era meramente um cientificista solitário. A participação do Brasil no congresso racialista foi financiada pelo governo federal, através do Presidente Marechal Hermes da Fonseca [20]. Lacerda, como representante do Museu Nacional, também obteve apoio do antropólogo Roquette-Pinto, seu assistente no dito Museu [20].

"Todos se irmanavam diante dos augúrios que anunciavam um novo contexto, não só de modernização mas também de uma 'democracia racial', ou melhor, nos termos da época, de um 'branqueamento democrático e pacífico'. Afinal, talvez Lacerda não tenha sido tão ingênuo no título que deu a seu ensaio. Ao contrário, foi literal: se o momento anunciava um Brasil mais branco, em sua delegação oficial defendia-se um futuro promissor, que havia de se impor 'sobre' os mestiços, apesar e acima deles." [20]

De fato:
 
“O projeto de nação elaborado pelas elites brasileiras nas décadas finais do século XIX e início deste [século XX] tinha na exclusão de parcela da população brasileira um dos pontos centrais.” [21].

Se a Espanha e o Mundo Espanhol poderiam ser isentos da mesma culpa? A legenda da própria pintura de Modesto não deixa dúvidas: "O negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças" [22]

A História cobra seu preço. Os apologistas católicos, assim como seus parceiros portugalistas, integralistas ou hispanistas, abriram um sepulcro que para eles teria sido melhor nunca tivesse sido violado.  


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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NOTAS:


[i] Em grande medida por culpa do próprio filósofo, como pôde visto nos repetidos ataques que este dirigiu ao Protestantismo por meio das suas redes sociais. Uma atividade, por sinal, coincidente com os períodos de baixo engajamento da sua figura pública nas mídias eletrônicas. 

[ii] Raramente maiores elaborações são desenvolvidas, aparentemente porque esses divulgadores pensam que a mera frase de efeito já é um embasamento por si só; quando há tentativa de embasamento, porém, os argumentos giram em torno de alegações não-provadas de que o calvinismo é racista ou que a teologia da eleição foi usada para sustentar supremacismo; de algum tipo, porque os poucos que vão tão longe geralmente têm ciência que brancos católicos não eram muito estimados na Anglosfera, impedindo uma associação direta com as formas mais modernas de racismo.

[iii] Consiste essencialmente em culpabilizar a Renascença e o Humanismo por supostamente reviver o paganismo e, assim, a escravidão. Paradoxalmente, as bulas papais que autorizam solenemente os portugueses de escravizar são relativizadas sob alegação de que a Igreja estava lutando uma guerra defensiva com os turcos;  após uma eventual vilanização dos protestantes e palpites que pintam a Igreja como uma indefesa e impotente instituição. 

Bom, primeiramente, que a escravidão transatlânica tenha sido iniciada por Portugal e seguida pela Espanha, os países menos humanistas e mais fervorosos da Europa, é algo que deveria levantar o mínimo de ceticismo pelos conservadores; mas por algum motivo, não existe tal reação, por algum motivo, quando o ceticismo é, ironicamente, a metodologia-primária do Conservadorismo Político. Além do humanismo não ter ligação com uma prática puramente ibero-medieval de escravidão, Portugal não estava envolvido com uma guerra contra os turcos em meados do século XV, qualquer tentativa de associar o avanço turco com a bula é um atestado de cinismo crônico em relação à geopolítica da época. Os únicos conflitos de Afonso V, naquela altura, era a manutenção e expansão de domínios na África e navegação por este continente. 

[iv] Nem a Igreja e nem o Cristianíssimo Império Romano de fato aboliram a escravidão no período medieval. Ao invés de pensarmos numa transição europeia do modelo escravocrata para o servil, isso só é totalmente verdade para certas regiões da Europa, cada país tendo suas próprias particularidades.

Enquanto o feudalismo franco-germânico colocou o escravagismo em desuso, as demais regiões vão sofrer processos parecidos, por influência destes. Os reinos ibéricos no período da "Reconquista", durante sua adaptação pontual e progressiva do feudalismo francês, manterão o regime escravocrata para os não-católicos — cristãos moçárabes, por conta do seu exoticismo, serão por vezes vítimas da escravidão; se a escravidão de cativos portugueses durante a invasão castelhana de 1380's é fruto de antigos hábitos ou, mais provavelmente, da consideração de que Portugal e Castela apoiavam Papas diferentes, já é sujeita à um estudo à parte. 

Quanto ao processo de extinção da escravidão no feudalismo, não temos registros ou evidência conclusiva para que possamos entender detalhadamente seu decorrer aparentemente natural e relativamente rápido.

"Os vikinques, como sugere a sua reputação, estavam entre os principais expoentes do comércio medieval de escravos, capturando homens e mulheres das costas vulneráveis da Europa e vendendo-os à Escandinávia ou ao Médio Oriente. Mas no decurso do século X, os normandos abandonaram gradualmente as suas raízes vikinques e começaram a adoptar a cultura e os costumes dos seus vizinhos francos, abraçando, por exemplo, o cristianismo, a língua francesa e também a arte franca de lutar a cavalo. Eventualmente, como parte deste mesmo processo de aculturação, também abandonaram o comércio de escravos. No século X, a capital normanda, Rouen, floresceu em parte como resultado da importação e exportação de cargas humanas, mas as referências ao mercado de escravos da cidade desaparecem por volta da viragem do primeiro milénio. É difícil dizer exatamente por que os normandos e os francos se voltaram contra a prática [...] A ideia de que a escravidão na Europa declinou conforme o Cristianismo se espalhou já foi descreditada há muito tempo. Até a virada do primeiro milênio, a Igreja tinha poucos problemas com a escravidão".
 (MORRIS, M. Normans and Slavery: Breaking the Bonds. History Extra, 2013).

Na Inglaterra, a Conquista Normanda (1066)  introduziu um processo desuso do regime escravocrata, anteriormente bem estabelecido. Ainda assim, apesar dos esforços do Duque da Normandia, o Domesday Book (1086) revela que 10% de toda a população era escrava; e, o que é mais surpreendente, é que a Igreja tinha uma participação não-insignificante na posse e uso de pessoas escravizadas. 

Eventualmente, por influência anglo-normanda, a escravidão entrará em declínio no resto da Grã-Bretanha, de modo semelhante como ocorreu no resto da Europa Católica. Contudo, nos lugares onde a presença pagã/muçulmana coexistiu com esse modelo de feudalismo, a escravidão persistiria junto com a sua presença (e.g. Prússia Teutônica, um Estado Monástico Católico). No Mundo Ortodoxo, porém, a escravidão não observou processo similar, escravizando tanto pagãos quanto cristãos, tanto da parte de leigos, quanto da parte da Igreja; com a chegada dos ciganos ao Leste Europeu, no século XV, "carne nova" foi posta à serviço dos escravizadores seculares e eclesiásticos. 

[v] Mesmo o posicionamento do Papado contra a escravidão de não-cristãos se dá em um contexto em que tal prática já era considerada imoral e ilegal pelo entendimento secular da época. Quanto ao seu envolvimento na prática, além do que já foi citado, é importante lembrar dos sínodos nacionais da Igreja Visigótica às vésperas da invasão islâmica, ordenando a escravidão de todos os judeus ibéricos, que anteriormente, em um momento magno de cinismo católico, foram proibidos pela Igreja de possuirem ou comercializarem escravos, intencionando tirar-lhes poder econômico. 

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REFERÊNCIAS:



[1] BOXER, Charles. O Império Marítimo Português: 1415 - 1825. Edições 70, 2002.

[2] LOWCOUNTRY DIGITAL LIBRARY INITIATIVE. Pope Nicholas V and the Portuguese Slave-Trade. Disponível em: <https://ldhi.library.cofc.edu/exhibits/show/african_laborers_for_a_new_emp/pope_nicolas_v_and_the_portugu>. Acesso em 4 de abril de 2022.

[3] BOXER, ibid.

[4] DA COSTA, Regina de C. R. Ambivalências brasílicas em face do domínio holandês nas capitanias do Norte (1630-1654). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2008.

[5] CHARLES DARWIN. A Viagem no Beagle. In: PEIXOTO, Laura. Nosso Útero Africano. Guarda-Chuva de Laura, 9 de julho de 2019. Disponível em: <https://guardachuvadelaura.blogspot.com/2019/07/?m=0>. Acesso em 29 de agosto de 2023.

[6] CHARLES DARWIN. A Viagem no Beagle, p. 383.

[7] BANZOLI, Lucas. Desconstruindo a utopia da monarquia católica no Brasil. Disponível em: <http://heresiascatolicas.blogspot.com/2017/04/desconstruindo-utopia-da-monarquia.html?showComment=1492554905424>. Acesso em 22 de junho de 2020.

[X] ALEXANDER, HERBERT B. Brazilian and United States Slavery Compared. The Journal of Negro History, Oct., 1922, Vol. 7, No. 4.

[8] ARTEAGA, Juanma Sánchez. Biological Discourses on Human Races and Scientific Racism in Brazil (1832–1911). Journal of the History of Biology volume 50, 2017. p. 267–314.

[9] BOTOSSO, Tatiana C. de O. Racismo no Brasil. São Paulo, 2012. p. 3.

[10] FLORES, Moacyr. República Rio-Grandense: realidade e utopia. EDIPUCRS, 2002. p. 163

[11] VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 239.

[12] RUSSEL-WOOD, A.J.R. Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Civilização Brasileira, 2005.

[13] SAMMONS, Mark. CUNNINGHAM, Valerie. Black Portsmouth: Three Centuries of African-American Heritage. UPNE, 2003. p. 52-55.

[14] BOTOSSO. ibid.

[15] MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global Editora : Ação Educativa, 2006. p. 103.

[16] SCHWARCZ, Lilia M. Predictions are always deceptive: João Baptista de Lacerda and his white Brazil. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702011000100013>. Acesso em 22 de junho de 2020.

[17] ARTEAGA. ibid.

[18] SCHWARCZ. ibid.

[19] Racismo - A Batalha Histórica Contra O Preconceito: Guia Mundo Em Foco Especial, ed.05. Online Editora. p. 51.

[20] SCHWARCZ. ibid.

[21] OLIVEIRA, Dennis de. Racismo no Brasil: estratégias políticas de combate ao racismo na sociedade capitalista contemporânea. São Paulo: Unegro, 2000. p. 7.

[22] SCHWARCZ. ibid.








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