Anastácio de Teópolis (r. 599-609): Falsificações Bíblicas e as Origens Degeneradas do Iconodulismo


No artigo anterior, nós abordamos a rejeição do Papa Gregório I ao culto às imagens, em 600 d.C. Gregório alegava não haver nenhum tipo de uso para às imagens, senão um só, segundo "a tradição" da Igreja: somente como ferramenta didática, contendo apenas o conteúdo das Escrituras, para a instrução dos iletrados (sed ad instruendas solummodo mentes fuit nescientium collocatum). Também mostramos que, neste mesmo período, o culto às imagens era uma superstição popular espalhada por vários lugares do que se entendia, na época, como Igreja Católica. Isto foi evidenciado não só pela descrição da "adoração às imagens" ocorrida na Gália, mas também ao criticismo judeu à respeito desta mesma prática dos cristãos daquela época, em outras regiões.

Uma pessoa moderadamente inteligente perceberia que os relatos de adoração de imagens praticada na Gália não era, como apologistas católicos gostam de supor, "o exagero de uma prática apostólica e normativa". O que os judeus criticam, e o que Leôncio de Neapolis defende, são correspondentes à prática dos cristãos galicanos condenada por Gregório Magno, um iconista bastante severo. No fim das contas, as igrejas calcedônias daqueles tempos, autoproclamadas de Igreja Católica, eram permeadas por um espectro de práticas e doutrinas divergentes quanto a questão das imagens, indo da iconoclastia até o iconismo e, dai, para a iconodulia.

E se isto já seria mais do que o suficiente para destruir qualquer pretensão sobre a origem apostólica e universal do culto às imagens; uma vez que a posição católica romana tradicional, pré-modernista, afirma que todas as suas doutrinas haviam sido "cridas em todos os lugares, sempre, e por todos" (São Vicente de Lerins. Commonitorium. Cap. 6, § 6); também compensa tratar dos escritos dos primeiros iconodulas, tornando ainda mais claro o quão infundamentado e medíocre foram as bases doutrinárias desta evolução de doutrina. 

Este artigo tem como objetivo tornar mais evidente a contradição doutrinária deste período de 580-650 d.C, além de mostrar as graves heresias e distorções dos primeiros teólogos iconodulas, de como esses erros foram aprovados e tornados canônicos no Concílio de Nicéia II, através da análise das epístolas de Anastásio de Teópolis ( 609), contemporâneo de Gregório Magno.


DA NEGLIGÊNCIA DOS PIONEIROS ICONODULAS


Se considerarmos apropriado tratar como "Pais da Igreja" indivíduos que foram contemporâneos dos bisnetos de Maomé e do próprio Carlos Magno em plena idade média, então João Al Mansur Damasceno, o Patriarca Nicéforo de Constantinopla, Teodoro Estudista e outros teólogos iconodulas do período da 1ª e 2ª Iconomaquia (726-842 d.C) são referências "patrísticas" do culto às imagens. Pelo menos, as referências não-forjadas e academicamente reconhecidas que de fato defendem a prática de culto aos ícones.

Ainda assim, um observador mais curioso notará que todas essas referências são, justamente, da própria época de resgate da teologia aniconista na Igreja Católica, caracterizando, essencialmente, teólogos reacionários, não os pioneiros; que seriam Leôncio de Neapolis, por seu tratado iconodula e anti-judaico na primeira metade do século VII [1] e Anastácio de Teópolis († 609), em duas epístolas.

Por conta de sua maior antiguidade, eles se encaixam perfeitamente no vício de ad antiquitatem de romanistas e greco-orientais, ie. falácia de que algo é correto por ser mais antigo que outra assertiva (eg. iconoclastia). Mas, curiosamente, isto nunca acontece: eles apelam para os reacionários, os contemporâneos da terceira e quarta geração da descendência de Maomé. Esta negligência com os pioneiros é, no mínimo, curiosa.

Poucos sabem que Lêoncio é reverenciado como santo em igrejas ortodoxas e greco-católicas (ex-ortodoxos em unia com o Papa). O mesmo é aplicado a Anatácio: apesar dele ser adulado como "Santo Anastácio" [2], "bem-aventurado Anastásio" [2] e "Santo Pai" da Igreja [3] nas sessões do Concílio de Nicéia II (787), sua veneraçāo e status de autor patrístico foi perdido na "Sagrada Tradição" das igrejas greco-orientais e papistas. E sim, a Tradição dos papistas: a condição de santo foi reconhecida pelo Papa Adriano [4].

A perda de seus escritos originais, sobreviventes apenas nos fragmentos citados naquele concílio, não necessariamente justifica sua pouca popularidade: é extremamente conhecido que santos obscuros ou até mitológicos, como São Maurício, São Mercúrio e São Jorge, desenvolveram uma profunda popularidade posteriori, mesmo que às custas da falsificação e da invenção de registros hagiográficos (o dragão de São Jorge, por exemplo, só foi adicionado à lenda na idade média, especificamente apenas no ambiente ocidental, católico romano).

Em Nicéia II se admite que Anastásio foi mencionado como referência no Concílio Iconoclasta de Hieria (754) [5]. O problema aqui é bem específico: grande parte da documentação do Concílio Iconoclasta foi destruída pelos iconodulas, assim como toda a documentação e tratados aniconistas disponíveis à época. Em certo sentido, era uma forma dos próprios iconodulas reescreverem a História da Igreja; o que temos de Hieria e de outros autores iconoclastas é essencialmente aquilo que os iconodulas pouparam, não por registro dos fatos, mas para refutar. Isso incluí também material patrístico antigo, como a posição iconoclasta de Epifânio de Salamina (310-403), preservada pelo Patriarca Nicéforo para sua refutação. Talvez outros Pais da Igreja tivessem posicionamento iconoclasta ou anti-iconodulista, e, por conta disto, foram sido destruídos em uma grande campanha iconodula de queima de arquivo.

Embora não saibamos primariamente no que ou como os iconoclastas usaram Anastávio, as pistas deixadas no Concílio, tratados no decorrer deste artigo, serão fundamentais para desvendarmos. De todo modo, parece que Anastácio não sofreu mera negligência passiva, o abandono soa quase como intencional.


A IMPORTÂNCIA DE ANASTÁCIO


Considerando que a obra de Leôncio seria atribuída ao início do século VII, a obra de Anastácio é provavelmente a primeira defesa do culto às imagens. Isto é posto em ainda maior proeminência pelo fato de que a obra de São Leôncio é, ela mesma, juntamente com toda uma gama de escritos, da iconofilia a iconodulia, passíveis de terem sido falsificados:

"Antes de endereçar estes assuntos, é necessário notar a eclosão do iconoclasmo contra imagens cristãs por parte dos padres na Armênia, que teria tomado lugar no final do século sexto ou no início do sétimo; assim como uma série de defesas das imagens contra iconofóbicos questionadores ou verdadeiramente iconoclastas durante o sexto e sétimo século. Todas estas posições são complexas, uma vez que as fontes que as registram são frequentemente tardias e sempre correligionárias, se não polêmicas, enquanto os contextos sociopolíticos e intelectuais de tais eclosões de iconoclasmo são incertas e, na melhor das hipóteses, hipoteticamente reconstruídas. Elas incluem a justificação de imagens e 'ornamentos materiais em santuários' que sobreviveram no Investigações Diversas de Hypatius, bispo de Éfeso, na década de 530; os sermões do início do século VII direcionados contra os judeus no Chipre, por Leôncio de Neapolis, cujo quinto sermão inclui uma defesa das imagens; e a defesa das imagens associada a figura de Vrt’anes K’ert’ogh. Todos estes textos têm sido questionados, tanto quanto à sua data quanto à sua autenticidade, como poderia se esperar nesta tão polemizada arena, com os nossas [referências] sobreviventes apenas em contextos secundários e em formas fragmentárias." (ELSER, Jaś. Iconoclasm as a Discourse: from Antiquity to Byzantium. Taylor & Francis Group: The Art Bulletin, 2014. p. 376-377.)

Por conta da pouca confiabilidade da documentação iconodula, famosa pela prática recorrente de falsificações documentais, recaí sobre Anastácio a responsabilidade de produzir a mais pioneira e precoce defesa do culto às imagens. Isto, é claro, também supondo que não falsificaram a posteriori os seus escritos, como fizeram com outros. O assunto das falsificações merecerá uma série de artigos apropriados, por enquanto, iremos o bispo de Teópolis defende.


A EPÍSTOLA A UM CERTO ADVOGADO


A edição de 1910 da Enciclopédia Católica se gaba de ter em Anastácio um dos iconodulas mais precoces. A passagem da epístola é dada pela mesma:

"Nós cultuamos (prosknoumen) homens e os santos anjos; nós não os adoramos (latreuomen). Moisés diz: Cultuarás o teu Deus e somente a Ele adorarás. Note, antes da palavra 'adorar' ele coloca 'apenas', mas não para a palavra cultuar, porque é legítimo cultuar [criaturas], já que o culto é apenas dar uma honra especial (com ênfase), mas não é legítimo adorá-los nem, por quaisquer meios, lhes dar orações de adoração (proseuxasthai)" (FORTESCUE, Adrian. Veneration of Images. The Catholic Encyclopedia. Vol. 7. New York: Robert Appleton Company, 1910. cof. Schwarzlose, Karl. Der Bildestreit i, 24).

O enxerto recebeu a aprovação da censura eclesiástica (Nihil Obstat e Imprimatur) do censor oficial e do Arcebispo de Nova York. No entanto, a Enciclopédia Católica mudou e falsificou o que realmente foi dito na citação. Sim, mesmo passando pela censura eclesiástica eles conseguiram ser aprovados Nihil Obstat (sem objeções), mostrando uma saliente falta de compromisso da Igreja Romana com a veracidade do conteúdo; importa para a censura, é claro, que ele apoie a Igreja, mas não tanto que o conteúdo seja verdadeiro. A fonte primária contendo o relato é dada abaixo, na quarta sessão do concílio:

"Estevão o Monge, pegando o livro, o leu: 'A Epístola de Santo Anastácio, bispo de Teópolis, a um certo advogado, onde ele responde certas dúvidas trazidas à ele, pelo mesmo', que começa:

'Se alguém, por si mesmo, buscar sabedoria, sabedoria lhe será imputada' e, após outras coisas, ele continua: 'que ninguém se ofenda pela menção de culto, porque nós cultuamos homens e anjos, mas nós nāo as servimos. Por que Moisés disse: 'Cultuarás ao Senhor teu Deus, e só a Ele servirás'. (Dt. 6:13; 10:20; Mt 4:10; Lc 4:8). E note, também, na expressão, 'servirás' (λατρεύσεις), onde ele adiciona o termo 'apenas'; enquanto na expressão cultuarás (προσκυνήσεις) ele não faz isso. De forma que é legítimo cultuar outras coisas, porque o culto é apenas um sinal de respeito: mas não devemos de forma alguma servi-los; portanto, nós não devemos orar a eles." [6]


A PROIBIÇÃO DE ENTREGAR ORAÇÕES


 É curioso a forma como a enciclopédia católica diz que Anastácio proíbe "dar orações de adoração", distinção que simplesmente não existe na fonte original; o termo é simplesmente "não devemos orar" (proseuxasthai; ref. 4336 da concordância Strong). A proibição é absoluta, e o tradutor da nossa literatura confirma que Anastácio "estabelece que se deve dar aos anjos o mesmo culto dado aos homens; e expressamente declara que não devemos orar a eles, uma vez que isto é um serviço dado somente a Deus" [7].

A intenção do autor da Enciclopédia Católica é clara: ele sabia o problema que a passagem apresentava contra a doutrina papista e alterou seu significado para protegê-la. De modo contrário, seria extremamente contraditório que um manual da fé romana, que pretende provar a equivalência de doutrina entre Gregório e Anastácio, admitisse que o primeiro iconodula nega um elemento dogmático fundamental do iconodulismo mais tardio:

"Por outro lado, especialmente em Roma, encontramos a posição das imagens sagradas explicada de maneira sóbria e razoável. Elas são os livros dos ignorantes. Essa idéia é a favorita de São Gregório Magno († 604). [...] Anastácio, bispo de Teópolis († 609), que era amigo de São Gregório e traduziu sua 'Regula pastorali' para o grego, se expressa quase da mesma maneira e faz a distinção entre prosquinese e latreia que se tornou tão famosa nos tempos de Iconoclastia." [8]

A Enciclopédia assassina o sentido de todos os textos mencionados. Ela mente sobre a compatibilidade de Gregório e Anastácio, aquele iconista restrito e anti-iconodulista, este um protoiconodula, ambos com diferenças irreconciliáveis. E também mente sobre Anastácio proibir apenas "orações de adoração", fornecendo a própria referência do grego que a refuta. Eu ainda vou me abster, por enquanto, de comentar a citação da passagem bíblica, que constitui uma outra polêmica.

Chega a ser caricatural que o Concílio de Nicéia II, que só admitiu a participação de iconodulas, simplesmente ignorou completamente do elefante na sala: a epístola de Anastácio condenava a oração aos santos, elemento inseparável do culto aos ícones. Na demonstração mais escancarada de Cherrypicking (falácia de supressão de evidência), o concílio ignorou as condenações de entrega de orações e seguiu:

"Tarasius: Observe aqui o que o pai diz no que concerne ao culto.

O Santo Concílio disse: 'Ele prova a diversidade no culto; porquanto diz: cultuarás ao Senhor Teu Deus e somente a ele servirás.' Para a expressão servirás, ele adiciona 'somente', enquanto na expressão 'cultuarás ao Senhor' ele não fez isso. Agora, o Conventículo pegou esta passagem como se estivesse a favor deles, mas nisto eles fizeram de forma impiedosíssima. 

Tarasius: Mas observe como o erudito pai se explica neste ponto: porque nós encontramos no meio da passagem citada algo que coage a todos nós - sim, mesmo aqueles que têm sido contenciosamente contra - a receber e cultuar imagens; porquanto ele diz: 'o culto é um sinal de honra.' De forma que todo aquele que honra imagens, mas se recusa a cultuá-las, são, pelo santo padre, culpados de hipocrisia: e, certamente, aqueles que admitem não prestar culto, que é um símbolo de honra, são réus da acusação de fazer o oposto, que é desonrá-las

Leão, bispo da Fócia [aquele que se retratou]: "Agora, de fato, me é adequado dizer, com o Profeta, 'convertestes meu pranto em júbilo, substituíste meu traje de luto por roupas de alegria' (Salmos 30:12). Por que as divinas Escrituras apartaram nossas mentes de toda impiedade, e nos encheram com conhecimento divino e entendimento." [9]

O Concílio:

I) Desviou completamente do fato de São Anastácio condenar a oração aos santos;

II) Distorceu abertamente a passagem da epístola como se ela dissesse que quem não cultua as imagens desonra os santos;

III) Condena o próprio Gregório Magno por proibir usos não-didáticos de imagens, como o seu culto: "Tarasius condena aqui São Gregório, o mais santo Papa de Roma, que expressamente diz: 'Adorare imagines vero omnibus modis devita'; e, de fato, todos os Pais até esta época se enquadram na mesma condenação; pois nenhum deles se provou ser um cultuador de imagens" [9].

Tudo isto encerrado com o comentário do bispo da Fócia, um ministro iconoclasta que precisou abjurar publicamente de sua doutrina para poder participar do Concílio. Afinal de contas, qual a melhor forma de aprovar uma doutrina, senão proibindo todos os que dela discordam de participar do processo de votação? Talvez pela primeira vez num Concílio Ecumênico, um dogma foi aprovado em unanimidade. Mas poderia ter sido diferente? Nem o Concílio de Nicéia (325) nem o Concílio de Éfeso (431) fizeram uso de uma estratégia tão rasteira.

Se, por ignorância, católicos romanos e ortodoxos hoje dizem que o Concílio de Nicéia II foi auxiliado pelo Espírito Santo para determinar a doutrina correta, constituindo magistério infalivel, eles devem ser apresentados à todas estas falácias retóricas e sabotagens de organização para garantir uma unanimidade artificial, independente dela estar certa ou não. Pode o Espírito Santo tomar parte em toda esta podridão? Quem assim o pensar, comete blasfêmia.

Não é difícil entender o porquê Hieria usou Anastácio ao seu favor, algo que o próprio tradutor da literatura utilizada concorda:

"Anastácio certamente deu algum suporte ao concílio opositor organizado por Constantino: uma vez que, se os anjos não devem receber orações, porque as imagens deveriam? E orar para ou diante de imagens é parte do culto dado a elas." [10]


DA REFERÊNCIA BÍBLICA E A DISTINÇÃO DE CULTO E ADORAÇÃO


Anastácio defende a possibilidade de se cultuar criaturas, como anjos e homens, afirmando que Moisés ensinou: "Cultuai ao Senhor teu Deus e só a ele servirás". Porém, ele referenciou de forma equívoca a passagem bíblica. Moisés ensinou:

"O Senhor teu Deus temerás e a ele servirás, e pelo seu nome jurarás" (Dt. 6:13. ARC)

"Temerás o Senhor, teu Deus, e ele servirás o teu culto e só jurarás pelo seu nome" (Dt 6:13. Bíblia Ave Maria)

"Tu craindras l`Éternel, ton Dieu, tu le serviras, et tu jureras par son nom." (Dt. 6:13. Bíblia de Jerusalém)

Ambas as traduções católicas, que não diferem das nossas quanto a natureza do conteúdo, só reforçam o fato de que a passagem não ensina nenhuma distinção dimensional entre temer e servir.  E, obviamente, Anastácio também não poderia usar "temor" como um análogo de culto menor, de dulia, vide todas as passagens bíblicas que sempre associam o termo ao predicado divino (Sl 111:10; Pv 9:10; Pv 22:4; Dt 8:6; Jó 28:28; 2 Cr 19:7; Sl 34:11-14; Lc 12:4-5 etc).

Anastácio, na verdade, quis se referir à resposta de Cristo ao Diabo. Vejamos três traduções protestantes:

"4. E, elevando-o, mostrou-lhe, num momento, todos os reinos do mundo. 5. Disse-lhe o diabo: Dar-te-ei toda esta autoridade e a glória destes reinos, porque ela me foi entregue, e a dou a quem eu quiser. 7. Portanto, se prostrado me adorares, toda será tua. 8. Mas Jesus lhe respondeu: Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a ele darás culto." (Lucas 4:5-8. KJV Atualizada)

"O diabo o levou a um lugar alto e mostrou-lhe num relance todos os reinos do mundo. E lhe disse: "Eu lhe darei toda a autoridade sobre eles e todo o seu esplendor, porque me foram dados e posso dá-los a quem eu quiser. Então, se você me adorar, tudo será seu". Jesus respondeu: "Está escrito: ‘Adore o Senhor, o seu Deus e só a ele preste culto’". (Lucas 4:5-8. NVI)

"5. Então o Diabo, levando-o a um lugar elevado, mostrou-lhe num relance todos os reinos do mundo. 6. E disse-lhe: Dar-te-ei toda a autoridade e glória destes reinos, porque me foi entregue, e a dou a quem eu quiser; 7. se tu, me adorares, será toda tua. 8. Respondeu-lhe Jesus: Está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás." (Lucas 4:5-8. JFA)

As principais versões católicas:

7. "Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu”. 8. Jesus disse-lhe: “Está escrito: Adorarás o Senhor, teu Deus, e a ele só servirás” 
(Lucas 4:7-8. Bíblia Ave Maria)

 "Si donc tu te prosternes devant moi, elle sera toute à toi. Jésus lui répondit: Il est écrit: Tu adoreras le Seigneur, ton Dieu, et tu le serviras lui seul." (Lucas 4:7-8. Bíblia de Jerusalém)

Para finalizar, a Vulgata de São Jerônimo:

"7. tu ergo si adoraveris coram me erunt tua omnia 8. et respondens Jesus dixit illi scriptum est Dominum Deum tuum adorabis et illi soli servies" (Lucas 4:7-8. Vulgata Latina)

É nítido, o diabo exige de Cristo proskynesis. Todos os biblicistas, inclusive os católicos, traduzem essa prokynesis tanto como adoração ou prostração, sem perda de significado: justamente porque ambas tem o mesmo sentido no contexto religioso. A referência bíblica Strong, do grego, traduz essa proskynesis tanto como prostração quanto como adoração [11].

Tanto latria quanto dulia, ou prostração, são originalmente palavras de significado secular. Mas, no contexto religioso, tanto dulia quanto latria têm significado idêntico. A distinção é ad hoc, post facto, utilizada com o único propósito de justificar uma prática supersticiosa da época, não ensinada pelos apostólicos e nem por qualquer pai da Igreja por mais de cinco séculos. Demoraria até a chegada da idade média para que Anastácio, o primeiro se erguer contra essa corrente, ou "tradição católica" no seu significado mais literal. Ainda assim, sua argumentação é tão cômica e repleta de erros que nem os iconodulas lucram algum benefício com ela; pelo menos, não sem uma maquiagem de citação digna de um falsificador profissional.

É por isso que nas notas de tradução do Concílio de Nicéia, Mendham comenta sobre a epístola de Anastácio:

"'O estilo deste autor', diz Du Pin, 'é bem indiferente: é seco, não-erudito, estéril e tedioso'. O trabalho mencionado no Concílio não é encontrado em nenhum outro lugar, o enxerto dado justifica a censura de Du Pin. Falacioso e evasivo, sua crítica da diferença de culto e serviço, quando unida à passagem completa, parece mais contra o Concílio do que a seu favor" [12]

Então, se a epístola de Anastácio não for mais uma falsificação, como tantas outras dezenas de forjaduras que os iconodulas fizeram, ela demonstra um protoiconodulismo que agride a doutrina dos papistas e greco-orientais . Em muitos aspectos, parece fazer sentido que sua condição de santo e pai da Igreja tenha sido jogada ao relento.


UMA TEOLOGIA DO PROTÓTIPO: EPÍSTOLA A SIMEÃO, BISPO DE BOSTRA


"'Quando algum soberano está ausente, sua imagem é reverenciada no seu lugar. Porém, quando ele esta presente, seria vão e inútil abandonar o protótipo e se dirigir a imagem. Todavia, mesmo que a imagem não seja mais reverenciada, porque ele está presente para receber esta honra, ainda assim ela [a imagem] não deve ser desonrada.' E algumas linhas depois: 'E aquele que insultar as imagens do reis adequadamente sofre por ter feito desonra ao próprio Rei; embora a imagem não seja mais do que madeira e cores misturadas e empregnadas com cera; desta forma, , aquele que despreza de qualquer um na verdade insulta as pessoas portadas nas imagens.'" [13]

Pertinente como o Culto Imperial, de natureza idolatrica pagã, é a referência para a teologia de Anastácio. E como já discutido, foi o culto imperial que, a longo prazo, deu origem ao próprio culto às imagens. Mas existe um elemento de destaque que destroí toda a fundação da teologia do protótipo desenvolvida por Anastácio: só existe culto a imagem de algo porque seu protótipo (quem é representado na imagem) está aussente. Aplicado aos ícones católicos, esta teologia se transforma uma negação impensada da própria onipotência divina! E ainda, até da presença real de Cristo nos elementos da Eucaristia:

"'Este pai (diz Comber) torna ridículo adorar a imagem do imperador quando o mesmo se faz presente; ainda assim, Cristo nos assegurou que Ele está presente sempre que nos reunimos em Seu nome, e nos prometeu que haveria de estar conosco até o fim do mundo. Por conta disto, é ridículo adorar sua imagem'. E novamente ele comenta: 'daí eu infiro que cultuar uma imagem de Cristo é negar Sua onipresença; e isto é tão ridículo quanto curvar-se e falar com a imagem de um rei quando ele mesmo o vê e o ouve, ou quando você se propõe a endereçá-lo diretamente. Além disso, nós não vemos ninguém que se curve ou ajoelhe para uma pintura ou estátua de um rei, muito menos que ofereçamos quaisquer petições ou louvores a tais figuras mortas; e, se alguém assim o fizer, este seria tomado como louco. No entanto, estas são as honras que os romanistas e os gregos fazem as imagens de Cristo e dos santos' - Gibson's Preservative, tit. vi. p. 296." [13]

Mendham ainda nos traz um relato curioso do culto imperial nos tempos de Constantino:

"De forma alguma ele poderia fazer ao rei qualquer injuria ao desfigurar sua imagem. ' Existe uma história (diz Jortin) sobre Constantino em Crisóstomo, tomo I, orat. 20, relacionada a Flaviano, que faz muito a seu crédito: alguns visistante, tendo ultrajado uma de suas estátuas, e tendo, entre outras coisas, atirado pedras a sua face [da imagem], ele [Constantino] colocou as mãos em seu rosto e disse que não as havia sentido"' [13]

O fiasco da argumentação das imagens, aprovada pelo Concílio Infalível, foi comentada pelos teólogos francos nos Livros Carolinos em termos bastante aceitáveis, elas eram "dementissimum et ratione carens" [13]. De fato, Anastácio e os concliares eram sem dúvida dementíssimos e carentes de razão. Os francos também refutaram os argumentos trazidos e toda a dulação dos conciliares:

"No que concerne o argumento pelo qual eles tentaram elaborar, sobre o costume das pessoas de fazer imagens imperiais  e de que as imagens do Salvador ou dos seus santos devem de forma semelhante serem adoradas – nós afirmamos o que já foi provado antes, pelas palavras do bem-aventurado Jerônimo, que estas imagens imperiais não devem ser cultuadas. [...] A mera razão nos proíbe de pensar que, como um imperador terreno, Deus é local; e de tal forma que, enquanto Ele está em único lugar, Ele envia suas imagens para serem cultuadas, assim como o imperador faz neste caso. Deus nunca está ausente em algum; porque, se Ele estivesse ausente em qualquer lugar, Ele deveria ser local; e, se for local, então Ele não contém todas as coisas e não preenche todas as coisas. Mas Ele preenche todas as coisas, logo Ele não está ausente em lugar nenhum; e, já que assim o é, Ele não deve ser buscado em imagens materiais, mas é ainda mais presente naqueles puros de coração. Se já uma coisa perversa o próprio ato de cultuar imagens de um imperador, sem dúvidas, assim também é uma coisa profana comparar a imagem daquele que é confinado em um lugar para a imagem de Deus, que não é confinado a um lugar, de forma que é tão perverso quanto é profano tentar estabelecer uma coisa proibida por uma outra" [14].

Não há o que se complementar. Os teólogos do Império de Carlos Magno massacraram a argumentação do Concílio e usaram a melhor referência possível para combater a simetria do Culto Imperial com o Culto aos Ícones, a condenação de Jerônimo.

Por providência divina, o Libri Carolini foi descoberto e publicado em 1549, pelo bispo católico de Meaux. A reação da Igreja Romana à redescoberta de um documento histórico tão importante foi bem característica: o livro foi posto no Index de livros proibídos [15], sendo terminantemente proibido de ser impresso, lido ou possuído; exceto por aqueles teólogos católicos de "índole confiável" mediante aprovação oficial de um bispo ou Papa. E assim seria até 1900 [15]. Tão supreendente quanto se poderia ser, a Igreja Católica seguiu seu costume: ocultou evidências e fez - na medida do seu alcance - queima de arquivo, buscando reescrever a História.


ANASTÁCIO DE TEÓPOLIS E DE ANTIOQUIA


Ainda vale endereçar que muitos estudiosos associam a figura de Anastácio, Patriarca de Antioquia, com Anastácio de Teópolis. Evagrius Scholasticus reforça isto ao comentar sobre os escândalos morais:

"CAPÍTULO 5: A DEPOSIÇÃO DE ANASTASIUS, PATRIARCA DE ANTIOQUIA

Justino ejetou Anastácio do episcopado em Teópolis, sob acusação de gastos impróprios e perdulários dos fundos da Sé, assim como rumores escandalosos contra o mesmo. De tal forma que Anastácio, sendo inquirido sobre seus gastos excessivos que deterioravam a propriedade da Sé, respondeu francamente, dizendo que assim o fizera para impedir que ela fosse levada pela peste universal, Justino. Também é dito que este guardava rancor contra Anastácio, por ele ter se recusado a pagar uma soma de dinheiro, quando exigida dele por razão da indicação ao episcopado. Outras acusações foram trazidas contra ele por pessoas que, eu acredito, apenas para concordar com o imperador." [16]

O pai do culto às imagens não seria só teologicamente medíocre e idolatra, ele também era trambiqueiro, caloteiro, corrupto e gastador compulsivo do dinheiro consagrado ao templo.

Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

[1] ELSER, Jaś. Iconoclasm as a Discourse: from Antiquity to Byzantium. Taylor & Francis Group: The Art Bulletin, 2014. p. 377.

[2] The Seventh General Council, the Second Council of Nicea, in which the worship of images was estabilished: with copious notes from "Caroline Books", compiled by order of Charlemagne for its confutation.  Tradução do Rev. John Mendham. Londres: 1850. p. 182.

[3] ibid. p. 359.

[4] ibid. 184.

[5] ibid. p. 181.

[6] ibid. p. 180-181.

[7] ibid. p. 181.

[8] FORTESCUE, Adrian. Veneration of Images. The Catholic Encyclopedia. Vol. 7. New York: Robert Appleton Company, 1910.

 [9] The Seventh General Council, the Second Council of Nicea, in which the worship of images was estabilished: with copious notes from "Caroline Books", compiled by order of Charlemagne for its confutation. p. 181-182.

[10] ibid. p. 181.

[11] Lucas 4. Bíblia KJV com a Concordância Strong. Disponível em: <http://www.godrules.net/library/kjvstrongs/kjvstrongsluk4.htm>. Acesso em 30 de junho de 2020.

[12] The Seventh General Council, the Second Council of Nicea, in which the worship of images was estabilished: with copious notes from "Caroline Books", compiled by order of Charlemagne for its confutation. p. 181.

[13] ibid. p. 183.

[14] ibid. p. 183-184.

[15] KRISTELLER, Paul O. Itinerarium Italicum. Brill, 1975. p. 90

[16] Evagrius Scholasticus. História Eclesiástica. Livro V, Cap. 5. Tradução de E. Walford. Londres: Samuel Bagster and Sons, 1846.  

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