O Culto Imperial e as Raízes Idólatras do Culto aos Ícones

A Apoteóse (deificação) de Antonino Pio e sua esposa Faustina (161 d.C), atualmente encontrado no Museu do Vaticano.
 
Cristãos de todas as classes se apresentam para o ofício estabelecido. Diante de uma imagem, fiéis leigos, monges, bispos e até o Patriarca de Constantinopla prestam seu culto. Incenso, velas e gestos de reverência são oferecidos diante da representação. O ofício, dizem eles, não é prestado para a matéria em si, mas para o que ela representa (mimese). O culto prestado não possui terminação na própria imagem, o que seria uma prática vã, mas é passado através da imagem até o seu protótipo.

Por mais que isto pareça uma descrição típica do culto às imagens sacras da Trindade, da Virgem Maria ou dos santos, o ritual descrito acima não é uma prática exatamente religiosa. A imagem, em tese, é secular, e aquele descrito na imagem é o próprio imperador romano. 

Embora soe escandaloso e sem dúvidas idólatra, o culto imperial é uma antiga prática cúltica pagã que sobreviveu à cristianização do Estado Romano. Perdurando até a queda do Império Romano Oriental (1453 d.C.), também chamado de Bizantino, o culto imperial constitui o exemplar mais manifesto de que, de fato, crenças pagãs anteriormente repudiadas pela comunidade cristã foram, noutros tempos, abraçadas por ela, prosperando nos principais eixos do governo eclesiástico da própria Igreja Católica.

Ao definirmos o culto imperial e dissertarmos sobre sua história, evidenciaremos as consequências da aceitação desta prática, oriunda do seio teológico pagão. Verdadeiramente, o culto às imagens sacras promulgado no Segundo Concílio de Niceia (787 d.C.) deriva uma paternidade espiritual no culto imperial, sendo herdeiro legítimo do Paganismo, como ele sempre foi acusado de ser.
 
 

AS ORIGENS DO CULTO IMPERIAL

 

 

O Dr. Nigel Pollard, arqueólogo e especialista de História Romana, nos descreve o culto ao imperador nos seguintes termos:

"Outro elemento na religião estatal romana era o que geralmente é chamado de culto imperial. Esse culto considerava imperadores e membros de suas famílias como deuses.

Em sua morte, Júlio César foi oficialmente reconhecido pelo Estado Romano como um deus, o Divino ('Divus') Júlio. E em 29 a.C., o filho adotivo de César, o primeiro imperador romano Augusto, permitiu que as cidades culturalmente gregas da Ásia Menor estabelecessem templos a ele. Esta foi realmente a primeira manifestação do culto ao imperador romano.
[...]
O culto ao imperador foi um fator unificador no mundo romano, praticado não apenas por unidades do exército espalhadas por todo o império, mas também por indivíduos nas províncias, onde havia centros de culto imperial coletivos em lugares como Lyons (Gália), Pérgamo (Ásia) e, provavelmente, Colchester (Grã-Bretanha).

O culto imperial ajudou a concentrar a lealdade dos provinciais ao imperador no centro do império, e em algumas regiões (como a Gália) há evidências de que as autoridades romanas tomaram a iniciativa de estabelecê-lo, provavelmente por essa mesma razão" [1].

 
A definição do Dr. Pollard está longe de ser extraordinária ou destoante daquilo que é defendido por pares. O "Religious Literacy Project", da Escola de Divindade de Harvard, define o culto ao imperador nos mesmos termos:

"[O] Culto ao Imperador, também conhecido como Culto Imperial, é o culto aos imperadores e às suas famílias como divinas, que começou com a morte de Júlio César em 44 a.C., quando o Estado Romano o declarou ‘divus’, ou divino. Em algumas partes do Império era aceitável adorar um imperador vivo, mas na própria Roma não era. O culto ajudou a unificar o vasto império" [2].


Pingente de ouro retratando Alexandre o Grande como Zeus Amon. Século IV, Império Romano.


É possível notar o culto de imperadores-deuses como um traço compartilhado com outros impérios pagãos da Bíblia, como o Egito e a Babilônia. No seu artigo pela Universidade de Cambridge, Stephan G. Schimidt realça que a veneração de imperadores-deidades era uma prática anterior ao costume romano, sendo também praticada pelos gregos:

"Na Grécia, como no Mediterrâneo como um todo, o culto de governantes foi bem estabelecido durante o período helenístico [...] nos reinos dos Atálidas, Selêucidas e Ptolemaicos, a mesma dinastia governou por séculos; e o culto a um governante vivo, assim como o culto dinástico, eram instituições estáveis [...]. Os líderes e figuras republicanas romanas também foram alvo de honras específicas na Grécia desde o início" [3].

De fato, é possível traçar proto-cultos aos governantes romanos ainda antes do Império, assim como sua evolução ritual em tempos imperiais:

"Mesmo antes da ascensão dos césares, há vestígios de uma 'espiritualidade real' na sociedade romana. Nos primeiros tempos romanos, o rei era uma figura espiritual e aristocrática e tinha uma classificação mais alta que os flamines (ordem sacerdotal). Mais tarde [...] o rex sacrorum sacrificial esteve fortemente ligado as ordens plebeias. [...] Rômulo, o fundador lendário de Roma, foi tornado herói como Quirinus, o "deus nunca derrotado", com quem os césares no futuro irão se identificar e com quem eles se considerarão as próprias encarnações.
[...]
Conforme o Império Romano se desenvolveu, o culto imperial gradualmente se desenvolveu de forma mais formal, constituindo o culto do imperador romano como um deus. [...] O Imperador Diocleciano viria a reforçá-lo quando exigiu proskynesis (prostração) e adotou o adjetivo sacrum para todas as coisas pertinentes à pessoa imperial. A deificação dos imperadores foi gradualmente abandonada após o imperador Constantino I começar a apoiar o Cristianismo. Porém, o conceito da pessoa imperial como sacra foi conservada adiante, numa forma cristianizada, no Império Bizantino" [4]. 

 

A POSTURA CRISTÃ PRÉ-CONSTANTINIANA AO CULTO IMPERIAL

 

Existe documentação abundante sobre como os cristãos lidavam com o culto imperial. Celso, o pagão, é uma importante testemunha ocular no século II. A própria Paulus, uma famosa editora católica brasileira, sintetiza os comentários de Celso:

“Celso combate as ideias particulares do cristianismo. Confronta as doutrinas tradicionais com as dos judeus e cristãos, para mostrar a inferioridade destas sob todos os aspectos, na medida em que se afastam das doutrinas tradicionais. Por isso, o cristianismo professa uma doutrina sem valor. Estigmatiza como sectarismo e intolerância a recusa cristã de altares e imagens, do culto dos demônios e do imperador, provas de um comportamento político irresponsável, inconsequente e perigoso que enfraquece a autoridade e a força do Estado, expondo-o aos bárbaros iníquos e selvagens.” [5].

A oposição cristã ao culto ao imperador era unânime: constituía idolatria, mesmo nos aspectos que não indicassem a adoração do mesmo como deus. Práticas que hoje são atribuídas ao costume ortodoxo de culto e reverência aos santos eram, no período anteniceno, tratadas por judeus e cristãos como idolatria. O Dicionário da Bíblia da Universidade de Oxford nos confirma:

"O culto dos imperadores romanos, vivos e mortos, tornou-se a religião do Estado em todo o império, embora tenha se originado como um simples ato de agradecimento pela paz e estabilidade trazidas por Roma. Os templos foram erguidos em homenagem a Júlio César logo após sua morte (44 AEC) e a Augusto durante sua vida (e.g. em Pérgamo). Isso explica a referência ao 'trono de Satanás' (Apocalipse 2: 13). [...] No entanto, à medida que os sentimentos de gratidão desapareciam, o culto imperial se tornava cada vez mais um teste de lealdade ao regime. A consequência foi que a recusa em realizar os rituais externos estava sujeita a punições. Por razão de consciência, judeus e cristãos eram incapazes de queimar incenso a qualquer ser humano. Os judeus, depois de alguma perseguição inicial, obtiveram tal isenção de Cláudio; mas os cristãos sofreram quando o número da Igreja se expandiu o suficiente para atrair a atenção hostil do Estado (1 Pedro 4: 16). O fracasso em dar honras divinas ao imperador ou 'jurar pelo gênio de César' não era o único motivo de perseguição; mas o escritor anticristão Celso (por volta de 178 EC) alertou os cristãos sobre os perigos de sua falta de senso cívico e de sua deslealdade a um império do qual eles obtiveram muitos benefícios materiais." [6].

A documentação cristã sobrevivente revela a brutalidade do aparato romano ao punir os cristãos por conta de sua recusa de prestar o culto ao imperador [7]. Ao menos no período anteniceno, essa recusa era intrínseca à doutrina cristã.

"... havia um número crescente de súditos do Império que tinham objeções religiosas ao culto imperial. Eles eram judeus e, logo, cristãos em ascensão numérica. Os judeus, especialmente após Gaius tentar colocar sua própria estátua no templo de Jerusalém, estavam mais ou menos isentos de culto direto: eles apenas oravam pelo imperador. [...] O problema era basicamente aquele que mencionamos: como você lidaria com um culto de imagens se você visse algum? Para os cristãos, não haviam privilégios. A acusação de que eles não cultuavam os imperadores [...] é, para Tertuliano (Apologeticum 10), a acusação padrão. O resto da tradição confirma este desprezo. É desnecessário aqui mencionar textos bem conhecidos, como a carta de Plínio o Jovem à Trajano (10:96) ou os mais confiáveis Atos dos Mártires, assim como dos mártires sicilianos, de Pionius ou de Policarpo, onde o teste de lealdade era precisamente o reconhecimento de seu culto." [8].

Se para os apologistas iconódulas dos séculos VIII e IX parecia aceitável embasar o culto às imagens sacras pelo culto à imagem imperial, tal arcabouço seria considerado por cristãos antenicenos como um verdadeiro delírio. Afinal, o culto não seria menos idolátrico por ser chamado de dulia; na verdade, esta distinção sequer era possível naquela época, já que ela é uma invenção tardia.

O bispo ortodoxo Kallistos Ware, como já mostrado em outros artigos, admite que não só a Igreja Primitiva era aniconista como, também, confirma o papel do culto imperial na criação de uma mentalidade iconodula:

"Foi apenas por avanços lentos que o uso de ícones se tornou estabelecido na Igreja. Reagindo ao seu ambiente pagão, os primeiros cristãos estavam ansiosos para estressar acima de tudo o caráter exclusivamente espiritual de seus cultos, e eles buscaram evitar tudo que pudesse experimentar idolatria: ‘Deus é espirito, e convêm que aqueles que o cultuam o façam em espírito e em verdade’ (João 4:24). [...] Com a conversão de Constantino e o desaparecimento progressivo do paganismo, a Igreja cresceu menos hesitante no uso de sua arte, e por volta de 400 d.C já era uma prática aceita representar o Nosso Senhor não apenas através de símbolos, mas diretamente. Nesta data, porém, ainda não há evidências que sugiram que as pinturas na igreja eram veneradas ou honradas com qualquer expressão externa de devoção. Neste período, elas não eram objetos de culto, uma vez que seu propósito era decorativo e instrutivo.

Mesmo nesta forma, no entanto, o uso de ícones levantou protestos de certos escritores do século IV, em particular Eusébio de Cesaréia (†339) [...] e pelo feroz anti-Origenista, São Epifânio de Salamina (c. 315-403).
[...]
O primeiro tipo de ícone a receber veneração não era religioso, mas secular - o retrato do imperador. Isso foi considerado uma extensão da presença imperial, e as honras que foram mostradas pessoalmente ao imperador também foram prestadas ao seu ícone. Incenso e velas foram queimados diante dele e, como sinal de respeito, os homens se curvaram diante dele no chão, sendo essa prostração normalmente descrita pelo termo proskynesis. Esse culto à imagem imperial remonta aos tempos pagãos: com a conversão do imperador ao cristianismo, ele foi prontamente aceito pelos cristãos, e nenhuma objeção foi levantada por parte das autoridades eclesiásticas.

Se os homens prestavam tamanho respeito à imagem do governante terrestre, não deveriam eles demonstrar igual reverência à imagem de Cristo, o rei celestial? Esta era uma inferência óbvia e natural, mas não foi feita de uma só vez. De fato, proskynesis foi mostrada em relação às relíquias dos santos e da Cruz antes de começar a ser mostrada em direção ao ícone de Cristo. Não antes do período posterior a Justiniano, entre os anos 550 e 650, que a veneração de ícones nas igrejas e casas privadas tornou-se largamente aceita na vida devocional dos cristãos orientais. Por volta dos anos 650-700 as primeiras tentativas foram feitas por escritores cristãos para prover uma base doutrinal para este crescente culto aos ícones e para formular uma teologia cristã da arte. De interesse particular é a obra, sobrevivente apenas em fragmentos, de Leôncio de Neapolis (no Chipre), revidando o criticismo dos judeus.” [10]

A POSTURA CRISTÃ AO CULTO IMPERIAL NO PERÍODO CONSTANTINIANO E ALÉM


Papa Francisco, queimando incenso diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima. Na doutrina católica romana, o incenso é equivalente a uma oferta de sacrifício.

Naturalmente, outras fontes concordam com as origens idólatras do culto imperial e de como ele foi hipocritamente normalizado pelos cristãos beneficiados pelo novo regime de Constantino:

"O concílio de 787 expressou a realidade da mimesis por analogia com a iconografia imperial bizantina:

'Quando alguém olha para o ícone de um rei, vê o rei nele. Assim, aquele que se curva ao ícone, se curva ao rei que está nele ... Assim como aquele que insulta o ícone de um rei é justificadamente sujeito a punição por ter desonrado o rei verdadeiro - mesmo embora este ícone não seja mais do que madeira e tinta misturadas e unidas com cera - de forma que aquele que desonrar a figura de qualquer desses [santos] transfere o insulto para aquele ao qual a figura esta [no ícone]'

De acordo com o culto imperial de Roma [...] o poder do imperador era onipresente. Como o imperador não era fisicamente onipresente, o poder imperial era representado por imagens que, por lei, se deveria prestar reverência e obediência como se fossem encarnações literais do corpo do imperador. O culto ao imperador parecia, para o Cristianismo Primitivo, como a verdadeira apoteose e epítome da idolatria. Com a conversão de Constantino, no entanto, a igreja gradualmente retirou sua oposição, eventualmente concluindo, com Atanásio, que:

'A semelhança do imperador na imagem é exata, de forma que uma pessoa que olha a imagem vê o imperador; e este que vê o imperador reconhece que ele está na imagem. E por uma semelhança não diferente, para aquele que gostaria de ver o imperador, a imagem pode dizer, 'eu e o imperador somos um; porque eu estou nele, e ele está em mim' ... De forma que aquele que cultua a imagem, nela cultua também o imperador; porque a imagem é ele na sua forma e aparência.' "
[...]
Outra instância de maior singularidade da presença literal do poder imperial em uma representação figurativa do imperador é encontrada na cunhagem. Para que moedas tivessem valor, a imagem do César que elas carregavam deve ser reconhecida como a encarnação literal do poder imperial. A resposta de Cristo às tentações dos fariseus pode ser interpretada endereçando a idolatria do poder financeiro na imagem de César, enquanto reserva o corpo natural do metal a Deus. " [11]


Nestes termos, se a Igreja Primitiva era intolerante e resoluta na sua oposição à idolatria e ao sincretismo, as políticas de favorecimento da religião cristã por Constantino persuadiram as lideranças cristãs a retribuir favores omitindo suas críticas ao sincretismo religioso e até mesmo o adotando de bom grado. Talvez por medo de serem vistos como ingratos pelo próprio Constantino, talvez como forma de descansar sua militância e permitir algumas concessões ao imperador. O que importa, porém, é que quando os iconodulas usam a autoridade do culto imperial para justificar suas práticas, por indução eles mesmos fundamentam o culto aos ícones sagrados em nada menos do que o ritual mais idólatra de todo o Império Romano.

O sincretismo e as adulações de bispos e lideranças cristãs à Constantino não são mera especulação. Confirmação maior disto é a entrada de Constantino na Enciclopédia Católica (1908), que recebeu todas as aprovações da alta censura eclesiástica: nihil obstat (sem objeções quanto à ortodoxia do conteúdo) e imprimatur (autorização final para a obra ser publicada como católica). 

"Por outro lado, o poder imperial cresceu ao receber uma consagração religiosa. A Igreja tolerou o culto ao imperador sob diversas formas. Era permitido falar da divindade do imperador, do palácio sagrado, da câmara sagradas e do altar do imperador sem ser considerado por isto como um idólatra. Deste ponto de vista, a conversão religiosa de Constantino foi relativamente insignificante, consistindo em pouco mais do que a renúncia de uma formalidade. Era isto que seus predecessores tentaram obter pelo exercício pleno de sua autoridade e ao custo de um incessante banho de sangue, isto é, unicamente, o reconhecimento da sua própria divindade; Constantino ganhou isto, embora ele renunciasse a oferenda de sacrifícios para a sua pessoa. Alguns bispos, cegos pelo esplendor da corte, foram longe o suficiente pra bradar que o imperador era um anjo de Deus, um ser sagrado, e profetizaram que ele iria, assim como o Filho de Deus, reinar no Céu." [12]

Esta posição sobre Constantino também é confirmada por fontes acadêmicas. Para nos restringir a um único exemplo, iremos coroar esta confirmação através da obra de Arnaldo Momigliano, aclamado como "o maior estudioso contemporâneo da História e Historiografia da Civilização Clássica".

"Mas não é difícil perceber que os imperadores cristãos não tinham pressa em acabar com o culto imperial. Ele havia criado raízes, tornado-se uma parte orgânica na relação entre soberano e súdito: de fato, ele indicava o ponto exato onde um súdito se sentia como um súdito. Sacrifícios, talvez, devessem ser eliminados por imperadores cristãos. O historiador eclesiástico Filostorgio é explicitamente crítico dos cristãos que ofereciam sacrifício à estátua de Constantino em Constantinopla. Quando Constantino escreveu sua carta aos cidadãos de Hispellum na Umbria, autorizando a construção de um templo à si e à sua família, ele havia estipulado que o culto 'não deve ser poluído pelo engano de qualquer superstição contagiosa'. Ele deve ter se referido a sacrifícios, embora não tenha dito sobre isto. Outro texto, desta vez de Constâncio em 341, torna evidente que Constantino de fato tentou impedir 'a loucura dos sacrifícios', mas a ocasião precisa não é indicada. O culto imperial, apesar de reformado, continuou [...]
Nós sabemos que no início do século VI ainda havia na pequena cidade africana, Ammaedara, um bom homem que se orgulhava de chamar a si mesmo de flamen perpetuus christianus, sem perceber alguma contradição entre flamen e christianus. Como G. W. Bowersock foi rápido em pontuar, o que realmente minimiza a importância de ser um divus para um imperador cristão era a chance de ser considerado um sanctus. O próprio Constantino era tratado no Oriente como um santo, até mesmo igual aos apóstolos, logo após sua morte.
[...]
Mesmo Teodósio II, que levava seu cristianismo a sério, ainda tinha que reconhecer, em 425, a realidade de estátuas, imagens e jogos [dedicados] a um imperador, embora ele preferisse que tais honras 'sem as altas vanglórias da adoração'. Os limites entre culto e respeito permaneceram pouco claros" [13].


Tão curioso quanto possa ser, a confusão advinda da distinção de culto divino e "veneração" é a mesma do culto às imagens. Embora os anticonodulas sempre pontuassem essa natureza idólatra, mal sabiam eles que isto não era apenas coincidência: ela foi herdada.

Os últimos registros conhecidos de césares divinos ocorreram no início da idade média: Libius Severus, em 461, no Ocidente, e Atanásio I, em 518, no Oriente.

À longo prazo, apesar de ligeiramente menos idolátrico, o cinismo de Constantino e a leniência dos imperadores futuros sedimentaria o costume bizantino, fatores decisivos no desfecho da Controvérsia Iconoclasta, nos séculos VIII e IX:

"O estudo das atitudes com relação às imagens adotadas por ambos os lados na Controvérsia Iconoclasta não pode ser divorciado do estudo mais amplo das atitudes pagãs e judaicas com relação às imagens. A civilização bizantina não era algo de novo, mas a continuação da cultura greco-romana. Não houve quebra rígida com o passado. O pagão que se tornou cristão e membro da Igreja Ortodoxa não foi forçado a abdicar dos tesouros da antiguidade clássica. [...] Neste sentido, o Iconoclasmo foi sem dúvidas um desafio a este senso de continuidade com o passado greco-romano. [...] A tentativa de quebrar a união tradicional chegou tarde demais para os bizantinos, já muito familiares com as condições da colonização constantiniana para tolerar qualquer mudança. Esta é uma ilustração notável da continuidade da civilização bizantina com seu passado greco-romano.” [14].

CONCLUSÃO



Mesmo entre iconoclastas bizantinos, o culto imperial persistiu no Oriente Cristão, que provavelmente já não lembrava mais do significado idólatra do mesmo, embora herdasse suas consequências.

No Ocidente Medieval, enquanto a presença imperial bizantina ainda se fazia presente na Itália, o culto imperial persistiu como parte da autoridade temporal do Império. A ascensão de Flávio Focas (r. 602-610) ilustra bem a extensão desta prática na própria Roma, durante o episcopado de Gregório Magno:

"Quando Focas sentou no trono, suas imagens foram recebidas e expostas em Roma: São Gregório não poderia, por consideração ao bem público, se omitir de escrever a ele cartas de congratulações." [14]

Apesar de banir os sacrifícios, o culto imperial manteve todos os outros elementos idolátricos: o culto a imagens, o oferecimento de velas, o incenso e a proskynesis que caracterizaram todo o culto às imagens, desenvolvido mais tarde, por influência do culto imperial. 
 
Essencialmente, ao normalizar o conceito de culto à imagem, inicialmente na esfera civil e tardiamente na esfera sacra, o culto das imagens sacras
 
 
idólatra e iconófilo no meio cristão do século IV, eventualmente culminando no . Por surpreendente consequência, a paternidade do culto aos ícones é idólatra na sua conotação mais virulenta.



Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião. 

REFERÊNCIAS


[1] POLLARD, Nigel. Roman Religion Cult. BBC, 2011. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/history/ancient/romans/roman_religion_gallery_06.shtml>. Acesso em 25 de junho de 2020.

[2] HARVARD DINIVITY SCHOOL. Cult of Emperor. Disponível em: <https://rlp.hds.harvard.edu/faq/cult-emperor>. Acesso em 25 de junho de 2020.

[3] SCHMID, Stephan G. Worshipping the emperor(s): a new temple of the imperial cult at Eretria and the ancient destruction of its statues. Cambridge University Press, 2015. Disponível em: <https://www.cambridge.org/core/journals/journal-of-roman-archaeology/article/worshipping-the-emperors-a-new-temple-of-the-imperial-cult-at-eretria-and-the-ancient-destruction-of-its-statues/B345A53F2DC051506DB4E27934F318C7>. Acesso em 25 de junho de 2020.

[4] WIKIWAND. Imperial Cult. Disponível em: <https://www.wikiwand.com/en/Imperial_cult>. Acesso em 25 de junho de 2020.

[5] ORÍGENES. Contra Celso, trad. e org. Editora Paulus, 2004, p. 21.

[6] OXFORD BIBLICAL STUDIES. Emperor Worship. Disponível em: <http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/opr/t94/e602#>. Acesso em 25 de junho de 2020

[7] MOMIGLIANO, Arnaldo. On Pagans, Jews and Christians. Wesleyan University Press, 1987, p. 101.

[8] Ibid, p. 101-102.

[9] PLACHER, William C. A History of Christian Theology: An Introduction. Westminster John Knox press, 1983, p. 94.

[10] WARE, Kallistos. The Veneration of Icons: Historical Development, ed. e org. CUNLIFFE-JONES, H. A History of Christian Doctrine. Bloomsbury Publishing, 2006. Cap. 3, p. 191.

[11] HAWKES, D. Idols of the Marketplace: Idolatry and Commodity Fetishism in English Literature, 1580-1680. Springer, 2001, p. 65-66.

[12] HERBERMANN, Charles. GRUPP, Georg. Constantine the Great. The Catholic Encyclopedia. Vol. 4. New York: Robert Appleton Company, 1908. Disponível em: <http://www.newadvent.org/cathen/04295c.htm>. Acesso em 25 de junho de 2020.

[13] MOMIGLIANO. ibid, p. 104-105.

[14] BARNARD, Leslie W. The Graeco-Roman and Oriental Background of the iconoclastic controversy. Leiden: Brill, 1974. Cap. 6, p. 80-81.

[15] BUTLER, Alban. The Lives of the Fathers, Martyrs and Principal Saints: January, February, March. Nova York: Archbishop's House, 1895, p. 803.

Comentários

Postagens mais visitadas