Forjando Doutrinas Papais para o quarto século: as Epístolas do Papa Marcelo

Ícone de São Pedro no retábulo de Viseu (1529), feito pelo pintor português Vasco Fernandes. Alimentada por fábulas, a perspectiva romanista antiga imaginava que um pescador sem ouro e prata se vestia como um monarca papal.


Dúzias e dúzias de falsificações: este costuma ser o saldo de um estudo aprofundado sobre a doutrina do culto às imagens; juntamente com desonestidade intelectual, uma série de falácias retóricas e argumentos tolos disfarçados por um manto de autoridade. Mas não é só ai que encontramos evidências de um cristianismo morto e corrompido. 

Só o assunto da estrutura megalomaníaca do Papado arremata um grande números de falsificações documentais em seu próprio respeito; talvez não tão abundantemente quanto a iconodulia, mas se considerarmos uma religião restrita às zonas de controle papal na Europa, a densidade de falsificações sobre o Papado não fica muito atrás.

Dessa vez, falaremos de uma fraude bem menos conhecida nos dias de hoje: nada de Doação de Constantino, Decretos de Pseudo-Isidoro e de compilações patrísticas adulteradas, o tema do nosso artigo são as Epístolas do Papa Marcelino.

Nosso texto será baseado no brilhante trabalho do anglicano Thomas Comber (1645-1699), intitulado "A História da Igreja, purificada das falsificações e corrupções romanas encontradas nos concílios e em Baronius, em quatro partes: do início do Cristianismo ao fim do Quinto Concílio Geral, 553". Nesta obra, Comber se dedicou a desmascarar as falsificações documentais feitas pela seita papista, recicladas e defendidas por apologistas negacionistas da Contrarreforma, como cardeal César Barônio (1538-1607).  


PROBLEMAS INICIAIS COM A AUTORIA DA EPÍSTOLA


Todos sabem que sem uma sucessão apostólica ininterrupta, conservada de forma autêntica por registros episcopais, não existe um átomo de legitimidade para o corpo de doutrinas romanas à respeito do Papado. E como nós também sabemos, todas as listas de sucessão apostólica em Roma são tentativas de reconstituir o passado da comunidade cristã em Roma, resultando numa miríade de contradições; o que necessariamente será inevitável, considerando que Roma não se formou por um governo episcopal, mas por um regime coletivo de presbíteros, como a maioria das igrejas evangélicas se organiza hoje.

Os frutos podres dessa tentativa de inventar sucessões ilusórias são vistas na figura inventada do Papa Marcelino I, que Comber disseca em detalhes no capítulo das "Falsificações do Quarto Século". Ao leitor leigo, é importante esclarecer que o "Anotador" frequentemente mencionado nos enxertos refere-se a algum dos autores das Notas, uma obra apologética contrarreformista feita pelos clérigos César Barônio e Severino Binio:

"§1. Este século começa com a Vida de Marcelo, um Papa tão obscuro que a Crônica de Eusébio o omite totalmente; nem Teodoreto conhecia qualquer coisa dele, ou do Papa Eusébio, uma vez que faz de Melquíades o sucessor imediato de Marcelino.

É digno de destaque que estes dois papas desconhecidos, nas Notas sobre suas Vidas, teriam governado dentro de um período de sete anos. Todavia, o Pontifical diz que houve uma vacância de sete anos após [a morte de] Marcelino, vacância esta também confirmada por Anastasius Bibliothecarius, por Luitprandus, pelo Abade Floriacens, por Cusanus e por Genebrara. E embora as Notas de Baronius e Binius neguem esta vacância de sete anos, eles a fazem por meras conjecturas; o Escândalo de uma vacância tão longa, sem dúvidas, colocou os velhos parasitas de Roma à trabalhar, inventando assim nomes de dois papas para introduzi-los na Lista, de onde provavelmente foram impugnados a Otatus e a Santo Agostinho, dois Padres latinos, enquanto os Autores Gregos (dos quais estes forjadores não entendiam) permaneceram incorruptos. Verdadeiramente, nada além dos nomes desses dois papas permanece e nenhum bom historiador menciona qualquer ato eminente feito por qualquer um deles. No entanto, o Anotador preferiu ao invés disso encher este cenário com nomes vazios de papas forjados, que não fizeram nada por sete anos, ao invés de deixar o leitor supor que a Igreja Católica era capaz de suportar uma espera tão longa pela sua Cabeça. Mas embora as Notas não admitam a autoridade do Pontifical para a existência da vacância, eles confiam nela para a história fictícia deste Marcelo em sua Vida, nos levando a acreditar que, em Roma, em tempos de perseguição, este Papa criou 25 igrejas, batizou convertidos e enterrou mártires; e embora as leis e costumes da cidade na época proibissem enterrar cadáveres dentro de seus muros, nós deveríamos crer que o tirano Maxentius (que fez todos estes mártires e perseguiu o próprio Papa) consentiu que o Papa quebrasse esta lei ancestral. Para o crédito do mesmo Pontifical nós somos informados de que uma certa dama, chamada Lucina, dedicou sua casa a este Papa (enquanto ele estava vivo) com o Título de S. Marcelo; e que o Imperador o transformou em um estábulo, fazendo do Papa seu guardião de feras lá, onde — de acordo com as palavras do Pontifical — ele terminou seus dias, nu e vestido com sacos, no dia 17 do calendário de Fevereiro. O Breviário Romano ordena que esta ficção seja lida ao povo crédulo ..." [1].

Desnecessário complementar que esta história possui todos os elementos de uma fraude: relatos fantasiosos, que contradizem totalmente o contexto histórico, que contradizem a lógica de dedicação de igrejas e são contraditas por outras versões de sucessão episcopal em Roma, menos sujeitas às ações dos falsificadores papais.

Mas ainda é curioso notar que Marcelo I é um santo da igreja romanista. Se o Papa Marcelo não existiu, então sua canonização refuta a própria Infalibilidade da Igreja, que não pode canonizar hereges, homens perversos ou figuras fictícias. Em síntese, temos aqui um dos vários exemplares de refutação efetiva de doutrinas como a Infalibilidade do Magistério (da qual a Infalibilidade Papal é só uma das suas várias faces).

Além disso, como bem notado por Comber, a vacância de sete anos também refuta as doutrinas romanas do Papado, especialmente aquela decretada no Concílio Vaticano I e que frequentemente é utilizada contra sedevacantistas por negarem a existência de novos papas desde 1960's:

"1825. [Cânon] Se, portanto, alguém negar ser de direito divino e por instituição do próprio Cristo que S. Pedro tem perpétuos sucessores no primado da Igreja universal; ou que o Romano Pontífice é o sucessor de S. Pedro no mesmo primado – seja excomungado" [2]

Se o cânon têm sido usado  — corretamente  — para afirmar que é impossível ser papista acreditando numa sede papal vacante por 60 anos, ele certamente pode ser aplicado por uma vacância de 7 anos, ainda que este seja um período menor; mas se no primeiro caso ele é feito como forma de afirmar a "ortodoxia" de seitas papistas continuístas (como conciliares e lefbvristas), no segundo ele prova que o próprio Papismo se refuta e não têm como arcar com suas próprias premissas, sendo uma religião comprovadamente falsa e digna de descrédito.


A EPÍSTOLA DE MARCELINO AOS BISPOS ANTIOQUENOS 


"[O Breviário Romano] diz a eles que Marcelo escreveu uma Epístola aos Bispos da Província Antioquena sobre a Primazia Romana para provar que Roma é a Cabeça de Todas as Igrejas e que nenhum sínodo deve ser realizado sem a autoridade papal. Mas esta Epístola é tomada por Labbé como uma falsificação, remendada de vários autores modernos, citando a Vulgata Latina e datada após a morte de Marcelo. E é muito estranho que em tempos de perseguição deveria haver uma temporada para o Papa disputar sua supremacia. Ainda assim, esta notória falsificação diz: Cristo ordenou a São Pedro que transladasse seu trono de Antioquia para Roma; e que os apóstolos por Inspiração decretaram que todos os apelos deveriam ser feitos ali, e que nenhum concílio fosse realizado senão pela Autoridade da Igreja Romana. Por estas causas, Binius a defende nas Notas com tantas falsificações quanto a própria Epístola. Sua primeira nota, sobre esta Epístola ter sido escrita para um certo Salomão, um bispo, é uma visão geral e pertence a 1ª Epístola do Papa Marcelo. Sua próxima nota é sobre a primazia e o poder de convocar sínodos, citando um cânon apostólico e niceno para isto; mas nenhum destes cânones pode ser encontrado. Ele cita também duas epístolas, um escrita de Alexandria ao Papa Félix, outra escrita pelo Papa Júlio às Igrejas Orientais, como provas desta Supremacia; o mesmo Anotador posteriormente declara ambas como fraudes. Ele falsamente diz que Dióscoro foi condenado em Calcedônia, apenas por realizar um sínodo sem o consentimento do Papa; no entanto, ele é conhecido por ter sido acusado de muitos outros crimes. Seu texto de Fasce oves, não serve em nada para este propósito; nem irá as palavras do Papa Pelágio estarão ao seu favor. Sua história de Valentiano não concede mais ao Papa do que a qualquer outro bispo; sim, o fato dos bispos desejarem que ele [ie. o imperador Valentiano] convoque um concílio mostra que eles pensavam isto [ie. a autoridade de convocar concílios] pertencia à prerrogativa dele; e Nicéforo relata em sua Resposta que ele estava atarefado com assuntos de Estado e que não tinha tempo para inquirir sobre esses assuntos. Portanto, após todo este sofismo elaborado, para justificar uma falsa assertiva de uma epístola forjada, o Anotador apenas mostrou sua parcialidade para com o Poder Papal, mas não fez nenhuma prova dele. 

A segunda epístola de Marcelo (ao Tirano Maxentius) também é uma falsificação manifesta, parte dela é retirada das Epístolas de Gregório, seu sucessor, escritas 300 anos depois. Também é altamente improvável que um papa perseguido deva falsamente, bem como ridiculamente, citar a um imperador pagão as Leis dos Apóstolos e seus sucessores, proibindo a perseguição da Igreja e do Clero; assim como instruí-lo sobre o poder da igreja de Roma de chamar sínodos e receber apêlos; assim como citar, como uma autoridade contra Maxentius, a Epístola Falsificada de Clemente, onde um leigo não deve acusar bispos. Mas as Notas não vão perder uma evidência tão preciosa, então fingem que Maxentius nesta época dissimulou-se como cristão. Contudo, isto não tem qualquer significado para aqueles que lêem a Epístola, onde Marcelo reclama que foi perseguido injusticimamente; logo, ele [o imperador] não fingiu ser um cristão na época e consequentemente toda a epístola é uma fraude absurda; assim como o decreto posto nela, que supõe crianças pequenas sendo oferecidas à mosteiros, e rapadas ou veladas ali (costumes que surgiram vários séculos depois destes eventos).

§. 2. Os Cânones de Pedro, Bispo de Alexandria, são genuínos, e um Registro de Disciplina Eclesiástica melhor do que qualquer coisa que algum Papa fez nestes tempos. O leitor observará que o Bispo de Roma não é mencionado nenhuma vez nesses Cânones; e eles defendem como Tradição o jejum de quarta-feira, ao contrário da pretensão da igreja romana, de ter uma Tradição Apostólica para o jejum no sábado" [3].

Em síntese:

1) Os papistas falsificaram a 1ª Epístola do Papa Marcelo;
2) Os papistas falsificaram a 2ª Epístola do Papa Marcelo;
3) Os papistas falsificaram o Papa Marcelo;
4) E o Papa Eusébio também;
5) Para justificar tais falsificações absurdas, os cardeais e doutores do Papado se escoram em outras falsificações ou em distorções de significado de textos autênticos.

Qualquer pessoa de conduta ilibada questionaria se o serviço da apologética da Contrarreforma não foi prestado ao Diabo, porque a densidade de mentiras, distorções e enganações em pormenores tão ridículos, para defender documentos igualmente ridículos, só pode ter como patrono o próprio Pai da Mentira.

No fim, Comber nos mostra como os doutores romanistas são adeptos de relativismo moral na sua análise de fontes. Se fossemos seguir qualquer bom senso, praticamente nada do que mentirosos crônicos como estes pode ser levado à sério.

"O Concílio de Elliberis, na Espanha, é por Binius situado sob o Papado de Marcelo; palavras que Labbé remove do título, e corretamente: porque se tivesse existido tal Papa, ainda assim o Concílio não o reconhece. Também não é provável que Roma conhecesse este concílio até muitos anos depois. Ainda assim, ele [o Concílio] é igualmente antigo e autêntico, embora Mendoza, no Labbé, contabilize vários autores católicos como Caranza, Canus, Baronius etc que rejeitam totalmente este concílio, ou neguem os cânones 34, 35, 36 e 40 dele, que condenam as opiniões agora mantidas em Roma. Embora Binius não ouse rejeitá-lo — porque o Papa Inocêncio o aprovou , ele ainda assim publica Notas para fazer o leitor acreditar que o Concílio não condena nenhuma das suas Opiniões ou Práticas" [3].

Os cânones condenados são justamente aqueles que negam as pretensões papais, o uso de imagens nos templos, o uso de velas onde os mártires possam estar enterrados e negações de organizações de freiras.

O procedimento é bem simples: falsifique evidências onde não puder encontrá-las e negue evidências autênticas quando elas expuserem os desvios da sua religião; mas, quando a sua religião aprovar a autenticidade da dita evidência, produza toda sorte de artifícios falaciosos para provar que tudo aquilo, até então visto como uma negação óbvia da sua religião, na verdade está de pleno acordo com ela.

Qualquer semelhança com a desonestidade da moderna apologética católica não é coincidência, é herança! 


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS:

[1] THOMAS COMBER. The Church History Clear'd from the Roman Forgeies and Corruptions found in the Councils and Baronius in Four Parts: from the Benning of Christinianity, to the end of the Fifth General Council, 553. Cap. IV, §1, p. 50-51. Disponível em: <https://quod.lib.umich.edu/e/eebo/A34084.0001.001/1:6.1.1?rgn=div3;view=fulltext&fbclid=IwAR2xh8HZxu0Q0BsBxCZxdtlBthUk6TXi2dlGGFCJiBuEJkeEaXNYEVKF08w>. Acesso em 14 de janeiro de 2021.

[2] CONCÍLIO VATICANO I, Cânon 1825.

[3] COMBER, ibid, p. 51-52.

[4] Ibid, p. 53.



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