A Iconofilia Apócrifa de Isidoro de Pelúsio (séc. V)

 


O Segundo Concílio de Nicéia (787) têm entre os seus principais eventos da Primeira Sessão a recepção de sete bispos que, tendo sido adeptos da "iconoclastia" enquanto ela era a doutrina oficial da Igreja Bizantina, se apresentaram para abjurar formalmente de suas crenças. Basicamente, isto significa dizer que desde o princípio não havia nenhuma pretensão de discutir e debater com divergentes: a iconodulia já estava tomada como certa ainda na abertura do sínodo. Não surpreende que as decisões do Concílio, como seus membros bem exaltaram, foram unânimes: eles sistematicamente vetaram a participação de discordantes para posteriormente, como que por intervenção divina, louvar seu santíssimo consenso (algo atípico para os próprios Concílios Ecumênicos).

Pode ser difícil descobrir as reais intenções daqueles sete bispos. Houve de fato uma conversão sincera? Meramente oportunismo de prelados querendo preservar seus privilégios com o "novo normal"? Essas questões parecem ter sido sensíveis ao juízo do próprio Tarasius de Constantinopla, o patriarca que presidiu o Concílio. Ele queria entender o quê convenceu aqueles bispos a abandonarem uma doutrina pela sua verdadeira antítese.

TARASIUS: 'Que argumentos trouxeram vocês à verdade?'

HIPÁTIO, e o resto: 'A doutrina dos Pais [da Igreja] e dos Santos Apóstolos.' 

GREGÓRIO, Bispo de Pessino: 'No Concílio dos Apóstolos, realizado em Antioquia, foi dito - 'Para que os salvos não mais possam errar sobre os ídolos, ao invés disso, a pura imagem teândrica de Nosso Senhor Jesus Cristo deve ser preparada para eles; ' e o bendito Isidoro de Pelusium diz - 'Não tem valor aquele templo que uma imagem não coroa'. [1]

Destes dois testemunhos levantados e aceitos pelo concílio iconódula, já provamos de forma definitiva que esse suposto Concílio Apostólico de Antioquia não passa de uma invenção fraudulenta. Mas ainda resta o segundo testemunho, a esperança final de que todos estes ex-iconoclastas não foram simplesmente convencidos por mentiras. Será Santo Isidoro de Pelúsio um legítimo testemunho de que imagens necessariamente devem estar em igrejas? Ou será que essa é só outra falsificação criada pelos apologistas iconódulas? 

Uma coisa, contudo, é facilmente identificável pela passagem atribuída a Isidoro: ela falha em trazer qualquer testemunho a favor do culto às imagens. A obrigatoriedade de existirem imagens num templo não agrega para a inovação ensinada pelos iconódulas. Talvez, se o dictum for verdadeiro, ela possa permitir que se discuta algo sobre iconofilia. Poderia se discutir se Isidoro estava exprimindo uma visão particular, de um partido eclesiástico (minoritário, equilibrado ou majoritário) ou até de toda a Igreja em seu tempo; poderíamos falsear todas estas proposições através do estudo das fontes imediatamente anteriores aos tempos de Isidoro, às fontes contemporâneas e às fontes posteriores. Todavia, o que ela definitivamente provaria — partindo do pressuposto de que ela é autêntica — é que Isidoro defendia a necessidade de imagens em igrejas, e só.


A VIDA E IMPORTÂNCIA DE ISIDORO DE PELÚSIO


Um dos problemas com a figura histórica de Isidoro vêm justamente da grande escassez de fontes e informações a seu respeito. Embora todas as fontes latinas e gregas afirmem que ele viveu entre a segunda metade do século IV e a primeira metade do século V [2], não sabemos exatamente quando ele entrou para o serviço eclesiástico, quando nasceu ou quando morreu.

Estas dificuldades são expressas também pela própria Enciclopédia Católica, que supõe — assim como tantos outros — que ele provavelmente morreu em algum momento anterior ao Segundo Concílio de Éfeso (449), já que não existem menções à sua figura nos documentos relativos a este sínodo e ao próprio Concílio da Calcedônia (451) [3].

Apesar de não fornecer datas, as fontes latinas, bizantinas e coptas afirmam que Isidoro adveio de uma abastada família da cidade de Alexandria, no Egito. Ele teria sido parente do Patriarca Teófilo, Papa de Alexandria (r. 384-412) e santo na religião dos coptas (miafisista). Tendo se destacado desde cedo na teologia e na piedade, é dito que o povo de Alexandria e os bispos egípcios tentaram torná-lo Patriarca [4], provavelmente após a morte do próprio Teófilo, em 412. De acordo com a lenda, ao invés de aceitar o patriarcado, ele fugiu para um mosteiro, localizado numa montanha próxima à cidade egípcia de Pelúsio. Lá ele teria seguido sua vida de ascese, embora também se empenhasse em escrever diversas cartas para exortação, orientação e consolo de membros da Igreja.

O padre Jean Paul Migne, no volume 78 da sua coleção Patrologia Graeca, publicou exatamente 2.182 cartas escritas pelo asceta. As cartas, no geral, costumam ser compostas de pouquíssimas sentenças, o que acaba viabilizando a existência de seu grande número. Mesmo assim, o controverso historiador Nikephoros Kallistos Xanthopoulos (c. 1256 - c. 1335) afirma que Isidoro compôs 10.000 cartas; tal afirmação, no entanto, não deve ser vista com muita credulidade por n razões (eg. hipérbole, grande lacuna temporal entre ambos etc), embora de fato ele tenha escrito um número imenso de cartas. 

Isidoro de Pelúsio foi um pai da Igreja relativamente importante para o seu tempo, tendo estabelecido contato com figuras famosas, como Cirilo de Alexandria e João Crisóstomo. E apesar do dilema causado pela datação escassa, sua menção como autoridade em favor das imagens certamente seria, para a mentalidade bizantina vigente na época, uma grande autoridade contra os iconoclastas.


DICTUM DE ISIDORO À LUZ DA EVIDÊNCIA HISTÓRICA E DOCUMENTAL


Para a causa iconódula, o Dictum precisa ser verdadeiro. Do contrário, se desqualificaria o próprio Concílio de Nicéia como maculado por falsificações. Em termos mais amplos, evidenciaria que os iconódulas venciam seus adversários se valendo de mentiras, com o Espírito Santo não tendo qualquer moção na coisa toda; no caso específico daqueles bispos, todos os argumentos convincentes serem fraudes prova não só a não-participação de Deus naquelas "conversões", mas a não-participação de Deus no próprio Concílio, sem que o Santíssimo sequer iluminasse algum dos 318 bispos ouvintes ou levantasse uma voz inspirada para corrigi-los das evidências falsas.

Se o Dictum é verdadeiro, ele foi derivado dos escritos isidorianos. E não parece sequer provável que a frase tenha sobrevivido oralmente por 300 anos até chegar nos ouvidos daqueles homens. Se eles se convenceram, o mais provável é que um apologista iconódula tenha citado Isidoro no século oitavo; provavelmente após o Concílio de Hieria (754), mas obviamente antes do Concílio de Nicéia II (787).

Se este apologista citou diretamente o dictum das cartas isidorianas ou fez uma menção indireta (sem citar fontes, como fez Gregório de Pessino no Concílio), não é possível determinar. Todavia, o fato é que sem a identificação da fonte, a alegação de que Isidoro foi iconófilo não sustenta qualquer autoridade. O ônus da prova não foi fornecido pelos bispos abjurantes e nem pelos participantes do sínodo. 

"Estar na Tradição", como iconódulas poderiam argumentar, não passa de um argumento Ad Hoc e falacioso; o mesmo poderia se dizer do suposto concílio apostólico de Antioquia, crido como tradição da Igreja desde o século oitavo, mas reconhecido por sacerdotes papistas desde o século passado como aquilo que realmente é: uma fraude. Com toda a sua reputação bem estabelecida de fraudar, mentir e falsificar referências, alegações iconódulas sobre evidência documental não-identificada é indigna de confiança.

É verdade que no corpus isidoriano o tema de imagens aparece com alguma proeminência, como pode ser facilmente verificável no volume 38 do Patrologia Graeca. Todavia, não são de ícones e imagens materiais que Isidoro fala, mas da Imago Dei: o que ela significa no texto bíblico e como ela se relaciona na natureza de Cristo e na criação. Como a própria igreja melquita exalta no Apolytikion de Isidoro de Pelúsio, uma espécie de hino em honra do asceta:

"A imagem de Deus foi fielmente preservada em ti, ó Padre. Porquanto tu carregaste a Cruz e seguistes Cristo. Por tuas ações nos ensinaste a ver além da carne, porquanto esta é passageira, para nos focarmos na alma, que é imortal. Portanto, ó Santo Isidoro, sua alma se regozija com os anjos." [5] .

Além de não ser rastreável aos escritos de Isidoro, o dictum não figura nas compilações trazidas pelos três tratados de João Damasceno, reconhecido como um dos principais compiladores de citações patrísticas em favor da veneração de imagens. Isto levanta grandes desconfianças, especialmente porque a autenticidade nunca foi exatamente um critério muito significativo nas compilações de Damasceno, que são repletas de documentos falsificados e citações distorcidas de seu significado original. 

Nem o Segundo Concílio de Nicéia trouxe a passagem em sua coletânea de evidências patrísticas. O que também é significante,  já que essa coletânea — assim como as de João Damasceno — é também repleta de falsificações. Tudo indica que, mesmo para os organizadores de citações patrísticas, tanto a existência de um Concílio Iconófilo dos Apóstolos quanto a existência do dictum eram completamente desconhecidas. Ainda que ambos tenham sido recebidos na Primeira Sessão e nenhuma contestação tenha sido feita de ambos, o fato de nenhum dos dois figurar na coletânea exposta nas sessões seguintes, realizadas semanas após sua apresentação na Primeira Sessão, diz muito. Na melhor das hipóteses, os organizadores da coletânea patrística não foram capazes de encontrar tais evidências.

Não sabemos qual foi o tratado iconódula que mencionou a evidência iconófila de Isidoro, já que aparentemente ele foi irrelevante o suficiente para seus próprios correligionários o relegarem ao oblívio documental. O fato de não figurar nas conhecidas coletâneas patrísticas iconódulas  — que não são exemplos de honestidade  — é uma evidência forte, mas não é a nossa única. 

A idéia expressa pelo dictum de Isidoro, de que uma igreja não possui valor se não for "coroada por uma imagem", é um conceito completamente anacrônico para a primeira metade do século V. O motivo é bem simples: embora já existisse evidência de iconismo nas igrejas, a prática ainda se encontrava na sua infância. 

Essa inovação foi abraçada por algumas igrejas de algumas regiões, mas grande parte ainda perdurava no aniconismo litúrgico. Regiões como Ásia Menor experimentaram adoção precoce da prática no último quarto do século IV, ao passo que regiões como a península ibérica persistiram com igrejas anicônicas na mesma época da Primeira Iconomaquia (726-787), como o estilo de arquitetura visigótico bem testemunha. Igrejas como a Nestoriana persistiram na arquitetura anicônica até o presente dia, ao passo que outras igrejas não-calcedônias foram retrógradas o suficiente para persistirem pelos séculos seguintes como denominações históricas não-iconódulas.

Sabendo que o iconismo evoluiu de maneira disforme, o último prego no caixão do dictum é constatar se o Egito foi, de fato, uma região de adoção precoce de imagens na igreja. Toda a evidência comprova justamente o contrário.

Podemos começar com o sermão pregado por Agostinho no Concílio de Hipona-Regius (393), um sínodo plenário pan-africano. O fato de Agostinho (354-430) ter sido um africano aniconista por toda a sua vida é ainda menos significativo que o fato dele ter pregado isto publicamente para bispos e presbíteros de todo o continente. Ao invés de ser condenado como herético ou até — supondo um cenário onde a questão de ícones era disputada ou adiáfora — censurado, Agostinho na verdade foi tão aclamado pelo sermão que o clero africano insistiu para que ele o conservasse num livro!

Paralelamente a isto, Evágrio Pôntico (345-399), que foi monge no Egito — região que chamava de "Pátria dos Monges"  — estabeleceu uma doutrina anicônica tão ou até mais rígida que a do próprio Agostinho. 

Tanto Agostinho quanto Evágrio podem ser chamados de origenistas, embora o primeiro tenha suas ressalvas; isto é, Agostinho condenou os excessos do origenismo no De Haresibus, um tratado de heresiologia que foi fortemente influenciado pelos tratados de Epifânio de Salamina, outro célebre aniconista. Independente de quão forte foi a influência de Origenes (185-254) no século V, tanto ele quanto Clemente (150-215) foram ministros da Igreja na mesma cidade onde Isidoro nasceu e viveu, o primeiro como presbítero e o último como bispo em Alexandria. Ambos são reconhecidamente aniconistas.

Levando em consideração Tertuliano (160-220) e Cipriano de Cartago (210-258); os numidianos Minúcio Félix de Cirta (150-270) e Arnóbio (m. 330); assim como Lactâncio (250-325), de origem bérbere ou púnica, pode-se dizer com segurança que a África foi o continente que mais produziu patrologia anicônica na História da Igreja. 

A historiografia secular também vem em nosso auxílio. De acordo com o bizantinista Juan Signes de Codoñer, as imagens mais antigas da África se situam a partir da segunda metade do século VI [6].

Rigorosamente, se o dictum é autêntico, então Isidoro foi o primeiro Pai da Igreja em toda a África a defender o uso de imagens em igrejas; e em termos tão temerários que implicaria dizer que uma igreja que não tem imagens sequer é uma igreja. Os problemas são óbvios: não apenas as igrejas da África seriam desqualificadas, mas também toda uma imensidão de congregações cristãs pelo mundo que ainda não haviam aderido à prática naquela época.

O Dictum de Isidoro de Pelúsio só faz sentido para um contexto do século oitavo. Mais do que isto: ela só faz sentido em um contexto especificamente bizantino. Era razoável para o falsificador da passagem atribuir iconofilia a Isidoro porque a maioria dos iconódulas gregos realmente acreditava que todas as igrejas sempre tiveram imagens. Uma perspectiva, aliás, imutabilista (vicentista) e anti-newmaniana: tanto o Cardeal Newman quanto o padre Bigham criam que imagens em igrejas são introduções de um período pós-niceno. Desta forma, se o Dictum Isidoriano é autêntico, o Cardeal Newman e o padre Bigham são anátemas.

O saldo de tudo isto é tão deprimente quanto se poderia esperar: todas as evidências trazidas pelos bispos abjurantes são embustes; o Dictum não prova iconodulia, não é autêntico e, sendo autêntico ou não, prova que os iconódulas certamente rejeitariam a perspectiva de Desenvolvimento de Doutrina como heresia, se algo tão modernista e liberal pudesse existir no século VIII.


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS:


[1] MENDHAM, John. The Seventh General Council, the Second Council of Nicea, in which the worship of images was established: with copious notes from "Caroline Books", compiled by the order of Charlemagne for its confutation. Londres: 1850. p. 19.

[2] ORTHODOX CHURCH IN AMERICA. Venerable Isidore of Pelusium. Disponível em: <https://www.oca.org/saints/lives/2013/02/04/100422-venerable-isidore-of-pelusium>. Acesso em 26 de janeiro de 2021.

[3] LECLERCQ, H. St. Isidore of Pelusium. The Catholic Encyclopedia. Vol. 8. Nova Iorque: Robert Appleton Company, 1910. Disponível em: <https://www.newadvent.org/cathen/08185c.htm>. Acesso em 26 de janeiro de 2021. 

[4] COPTIC ORTHODOX CHURCH NETWORK. Lives of Saints: Amshir 10, 3. The Departure of St. Isidore of Pelusium. Disponível em: <http://www.copticchurch.net/synaxarium/6_10.html>. Acesso em 26 de janeiro de 2021.  

[5] GREEK ORTHODOX ARCHDIOCESE OF AMERICA. Isidore of Pelusium. Disponível em: <https://www.goarch.org/chapel/saints?contentid=412>. Acesso em 26 de janeiro de 2021.

[6] CODOÑER, Juan S. Melkites and Icon Worship during Iconoclastic Period. Washington D.C.: Dumbarton Oaks, numbers sixty-seven, 2013. p. 135.

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