O Concílio "Apostólico" de Antioquia (57 d.C.) e o terrorismo contra a inteligência



Toda discussão teológica, seja ela qual for, têm o Ad Fontes como princípio explícito ou implícito. Isto é, que uma dada doutrina tem suas raízes no ensino apostólico. Naturalmente, este princípio também se aplica ao debate sobre ícones: protestantes, papistas e melquitas todos disputam a ortodoxia de sua doutrina alegando amparo neste Depósito de Fé.

Contudo, por conta das evidência claras do Aniconismo Patrístico Primitivo, o Newmanismo precisou conciliar a doutrina romana moderna com o registro anicônico, defendendo a existência de um processo evolutivo que foi do aniconismo até iconodulia. 

Contudo, o erro mortal deste esforço consiste especificamente em contrariar aquilo que os próprios iconódulas criam e ensinaram: que o culto às imagens vêm dos próprios apóstolos. Esta concepção, por mais estúpida que seja, foi a motivação para algo ainda mais estúpido: as falsificações formuladas para que se provasse a origem apostólica do culto às imagens.


O CONCÍLIO APOSTÓLICO DE ANTIOQUIA


Embora papistas e melquitas sejam bastante claros na sua assertiva de que a sua Tradição é incorruptível e imutável, sem retirar ou adicionar qualquer coisa, dificilmente encontraríamos hoje meia dúzia de iconódulas em todo o mundo que ouviram falar do Concílio Apostólico de Antioquia. Dado que ele sozinho encerraria todo o debate sobre a legitimidade dos ícones em favor dos iconódulas, esse desconhecimento é extremamente inquietante.

Todavia, nem João Mansur Damasceno; nem Teodoro Abucara; nem iconódulas ocidentais, nem Papas, nem os concílios iconódulas romanos ou qualquer cristão ocidental antes do Segundo Concílio de Nicéia (787) ouviram falar de tão importante referência. O Concílio, que de acordo com apologistas como o cardeal César Baronius (1538-1607) foi reunido em 57 d.C. [1], nos deixou nove atas. Destas, temos interesse na oitava:

"1. Que os crentes em Cristo, até então denominados 'Discípulos', devem a partir de agora ser chamados de cristãos (Atos 11:16).

2. Que nenhuma pessoa batizada deve ser circuncidada. 

3. Que a admissão na Igreja deve ser concedida a todas as nações. 

4. Que avareza e ganância devem ser evitados. 

5. Que glutonaria, comparecimento a teatros e juramentos devem ser proibidos.

6. Que vulgaridade e maneiras pagãs sejam evitadas. 

7. Confirma o decreto do Concílio de Jerusalém (Atos 15:19).

8. Sobre imagens sagradas. Este Cânon, Binius dá toda sua extensão:
'Não deixe os salvos serem enganados por causa dos ídolos; mas deixem que, por oposição, pintem a imagem divina, humana, manufaturada e sem mistura do verdadeiro Deus e nosso Salvador Jesus Cristo, assim como as imagens de Seus servos, contra idólatras e judeus. Não os deixem errar com ídolos, nem serem como os judeus".

9. Que as leis judaicas relativas às carnes não sejam mais permitidas." [2]

Não temos a necessidade de elaborar uma explicação do porque este concílio é falso, pois sua própria proposição é tão carente de bom senso que não configura outra coisa senão um atentado terrorista contra a inteligência de qualquer indivíduo minimamente informado sobre o Cristianismo. O teólogo liberal Adolf Harnack constata o óbvio: 

"As atas deste Concílio são na sua maior parte um cento de passagens e reminescentes dos escritos do Novo Testamento; seu caráter inautêntico (se é que é necessário gastar quaisquer palavras sobre o assunto) é consequentemente indubitável." [3]

Roger Pearse, um crítico-textual cristão apreciado pelo próprio padre Paulo Ricardo [4], sintetiza adequadamente o caráter apócrifo destas atas: "A obra obviamente não é genuína. Ela é composta de extratos da Bíblia, então é um cento" [5].

Enquanto todos os outros cânones são extratos neotestamentários (cento), o oitavo cânone sobre imagens não tem qualquer base no ensino bíblico dos apóstolos. O falsificador parece ter misturado oito cânones de conteúdo bíblico e um cânone de iconofilia medieval, dissolvendo o falso no verdadeiro para tornar a fraude mais convincente. 

Mas não importa que citemos estudiosos confirmando o caráter fraudulento desse documento que se diz apostólico, uma vez que papistas militantes operam no regime de Negação Plausível: se uma evidência contra a Igreja puder ser desqualificada, não importa quão fútil será a desqualificação, ela será feita como recurso para proteger a doutrina romana. Todos os autores citados não são católicos, logo, pela evasiva desonesta, eles mentem contra a Igreja.

Felizmente, para a frustração dos negacionistas, o reconhecimento da falsa atribuição também se estende à críticos católicos modernos. O padre Paul Lejay (1861-1920), no períodico católico conhecido como Revue du clergé français, não hesita em chamar o autor destas atas de "faussaire" (fr. falsário ou falsificador), constatando a natureza inautêntica do documento:

"Aquilo que costuma levar o rótulo de apostólico nem sempre é tão venerável quanto o título poderia levar a crer. [...] Leitores desta revisão podem me permitir sintetizar brevemente o conteúdo deste pequeno problema. Este é um dos muitos exemplos onde um apócrifo revela as intenções dos seus autores. A fim de que eu não me foque apenas no meu trabalho como relator, eu arriscaria dizer que a origem e o relato deste documento se tratam de uma conjectura, ou se preferir, de uma combinação." [6]

O documento obviamente não é apostólico, mas a tentativa de mitigar a culpa do nosso falsificador — um correligionário do padre Lejay — também não é consistente. Admitir que o autor simplesmente conjecturou sobre eventos é uma coisa, ele forjar um documento alegando que seu conteúdo continha cânones de um concílio apostólico desconhecido, dando-os detalhadamente, é outra coisa: vigarice. De fato, uma atribuição apostólica implica que o documento está introduzido no Depósito de Fé, sendo parte da própria Revelação Pública, infalível por definição. Os pecados e os danos causados pelo nosso faussaire não precisam ser discutidos em maior extensão.


O USO DO OITAVO CÂNONE NO SEGUNDO CONCÍLIO DE NICÉIA (787)


A forma como os iconódulas fizeram uso do cânone iconófilo é igualmente cômico e trágico. A falsificação foi utilizada na Primeira Sessão do Concílio, após alguns dos bispos iconoclastas terem renunciado suas "heresias":

"TARASIUS: 'Veja como aqueles que antes estavam organizados contra a ortodoxia agora estão unidos em defesa da verdade. 

CONSTANTINO, bispo de Constantia em Chipre: 'A retratação do Santíssimo Bispo de Ammorium arrancou de mim muitas lágrimas.'

TARASIUS: 'Você concorda que eles devem retomar seus lugares?' 

O reverendíssimo dos MONGES disse: “Como os seis santos Concílios Ecumênicos receberam aqueles que voltaram da heresia, vamos recebê-los.

O SANTO CONCÍLIO disse: 'Nós estamos de acordo.'

Depois disso, Basílio, o santíssimo bispo de Ancira, Teodoro, o santíssimo bispo de Mira, e Teodósio, o santíssimo bispo de Amório, tomaram seus assentos de acordo com sua ordem. Quando eles se sentaram, EUTHYMIUS, Bispo de Sardes, disse: 'Deus nos fez ortodoxos gloriosamente'

O SANTO CONCÍLIO disse: 'Que os ortodoxos se sentem no Concílio, e o Pai com os Pais. Deus os fez ortodoxos gloriosamente'. 

Depois disso, Hipátio, reverendíssimo Bispo de Nicéia; Leão, reverendíssimo Bispo de Rodes; Gregório, o mais renomado bispo de Pessinus; Leão, reverendíssimo Bispo de Icônio; George, reverendíssimo Bispo da Pisídia; Nicholas, reverendíssimo Bispo de Hierápolis; e Leão, reverendíssimo bispo de Carpathus, foram apresentados ao Concílio.

TARASIUS, se dirigindo a eles, disse: 'Reunidos em um bairro qualquer, o qual não me importo em nomear, vocês organizaram um concílio clandestino, mas não para Deus; e vocês fizeram uma aliança, mas não pelo Senhor (Isaías 30:1), quando, durante o ano passado, vocês se reuniram de forma secreta e dissimulada, com a intenção de banir e expulsar totalmente a verdade. Agora, se vocês fizeram isso por ignorância, digam-nos como foi que vocês se tornaram tão ignorantes; se foi a partir de pretensões equivocadas de raciocínio, então deixe que seus raciocínios sofísticos sejam apresentados, para que todos possam ouvi-los. Assim, esta sagrada assembleia, tendo a verdade invencível como sua aliada, despedaçará e totalmente desvendará todas as suas vãs falácias e raciocínios contraditórios, como bandas de falsidade, não tendo nenhum fundamento na verdade, nem qualquer confiança nela.'

LEÃO, Bispo de Rodes: 'Pecamos diante de Deus, e diante de Sua Igreja, e diante deste santo Concílio; pois caímos por nossa tolice e não podemos defender nossa conduta.' 

GREGÓRIO, Bispo de Pessino: 'Segundo a fé transmitida pelos santos Apóstolos e Padres, assim confessamos e mantemos.'

TARASIUS: 'Se tiveres algum argumento, traga-o à tona, como dissemos antes.'

HIPÁTIO, Bispo de Nice, com os demais: 'Meu santíssimo Senhor, não temos argumentos para apresentar: dissemos o que dissemos por ignorância e loucura.'

TARASIUS: 'Que argumentos trouxeram vocês à verdade?'

HIPÁTIO, e o resto: 'A doutrina dos Pais [da Igreja] e dos Santos Apóstolos.' 

GREGÓRIO, Bispo de Pessino: 'No Concílio dos Apóstolos, realizado em Antioquia, foi dito - 'Para que os salvos não mais possam errar sobre os ídolos, ao invés disso, a pura imagem teândrica de Nosso Senhor Jesus Cristo deve ser preparada para eles; ' e o bendito Isidoro de Pelusium diz - 'Não tem valor aquele templo que uma imagem não coroa'.

LEÃO, Bispo de Rodes: 'Embora, de fato sejamos pecadores, vis e indignos, ainda assim as palavras de verdade e piedade, que nós agora proferimos, buscamos para nós mesmos; porque através da voz do Profetas, dos Apóstolos e dos Mártires, estamos plenamente convencidos de que a verdade e a religião requerem que imagens santas e veneráveis sejam mantidas na Igreja, de acordo com o costume transmitido em épocas anteriores pelos Apóstolos; e assim nos tornamos obedientes à verdade. 

TARASIUS: 'E como é que, tendo sido bispo por dezoito anos, você não obedeceu à verdade até os dias de hoje?' 

LEÃO, Bispo de Rodes: 'Porque aquela perversidade e doutrina perversa por tanto tempo permaneceu entre nós, e enquanto se demorava, fomos enganados por nossos pecados e nos afastamos da verdade; mas confiamos em Deus que seremos salvos. "

TARASIUS — 'Como no corpo, doenças de longa data têm dificuldade de admitir uma cura. Assim também a alma, há tanto tempo na escuridão da heresia, com não menos dificuldade admite os raios da ortodoxia'. " [7]

A judiação é completa. Tarasius, que preside o concílio, exalta o suposto auxílio sobrenatural do mesmo, tendo "a verdade invencível como sua aliada", mas logo depois consente com duas falsificações. Como bem notado pelo reverendo John Mendham, tradutor do sínodo iconódula, todos em Nicéia II receberam tal falsificação, e nenhuma objeção foi levantada quanto à sua autencidade [8]

O abade de Studium ainda têm a ousadia de glorificar: "Lovado seja Deus, que os direcionou para os caminhos da verdade" [9]. Mas que Deus direcionaria cristãos na doutrina apostólica para uma inovação idolátrica através de documentos falsos? Onde estava o Espírito Santo quando o conventículo iconódula recebeu fraudes ainda na sessão de abertura do concílio? Certamente, este não é um concílio infalível, não foi assistido pelo Espirito Santo e nem teve a verdade invencível como sua aliada.


CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTEÚDO ICONÓFILO DO OITAVO CÂNONE


Se pararmos para analisar o conteúdo das atas, surgem mais problemas para a causa iconódula do que soluções.

I) O autor afirma que o uso de imagens cristãs é feito para se distanciar de dois grupos distintos. Um deles são os pagãos, que são idólatras e fazem imagens de seus deuses. Os judeus, porém, são representados como antíses do grupo anterior. O documento deixa escancaradamente claro que a religião judaica era anicônica, diferentemente do que muitos iconódulas costumam defender. Na verdade, se crido autêntico, isto significaria dizer que os judeus, pelo menos desde o primeiro século, já eram vistos como uma religião anicônica. 

II) O falsificador parece ter tido algum resquício de bom senso, porque se limitou a tratar meramente de iconismo, não de iconodulia. E também não gerou uma imposição, mas um adiaforo. Se esse documento tivesse algum átomo de validade, ele provaria que o iconismo luterano é o ortodoxo e o apostólico, às custas de toda outra forma de iconofilia. 

II) Em síntese, o Cristianismo surgiria como distintivo desses dois grupos, se apartando do culto às imagens dos pagãos e do aniconismo judaico. Como o documento faz parte da Tradição Papista e Melquita, todo iconódula que defende algo diferente destas três atribuições a esses três grupos, especialmente no que diz respeito à negação do aniconismo judaico, formalmente contradiz a visão de sua própria doutrina

Devido ao fato de sua primeira menção ter se situado no Concílio de Niceia II (787), diversos estudiosos têm se debruçado sobre a possibilidade desta Tradição, assim como seu respectivo documento, ter sido forjada no próprio século oitavo, para produzir referências Ad Fontes para a causa iconódula.

Mas tanto Harnack quanto o padre Lejay defendem uma data mais antiga, pelo menos a partir da segunda metade do século IV ou do século V [10], como também sustentado por Pearse [11]. Mas, diferentemente do conteúdo iconista do documento, seu entendimento original seria anicônico, não icônico; de forma que na verdade os iconódulas teriam distorcido o caráter original do documento para fornecer uma interpretação falsa de uma fonte falsa: isto é, uma fraude em duas etapas. 

O padre Lejay sintetiza a controvérsia com base nos cânones originais em grego:

"Em 787, no Segundo Concílio de Niceia, Gregório de Pessino citou este cânon apostólico em favor das imagens. O texto completo prova, contudo, que o sentido da passagem é figurativo. É nos seus próprios corações que os fiés devem formar a imagem e erguer a coluna de Cristo. Jesus Cristo é aqui uma estela, não feita por mãos humanas; como na Primeira Epístola aos Coríntios, ele é a rocha. Não existe oposição completa entre ambos os objetos materiais: com sua penetração ordinária, o Sr. Harnack foi capaz de percebê-la claramente. O culto aos ídolos sugere uma metáfora de imagem e coluna, e se trata aqui de uma metáfora. Um homem tão imbuído de sentido espiritual e anagógico das Escrituras não poderia pôr outro significado às suas próprias palavras. Ele não teria, ao interpretá-las, o 'coração estúpido dos judeus'.

Este desentendimento cometido por Gregório de Pessino está longe de ser atípico. Na controvérsia sobre o culto às imagens, uma leitura torturante é aplicada à todos os textos possíveis da Bíblia, dos Pais e dos Concílios, para extrair deles aquilo que eles não contém. Um exemplo clássico deste procedimento vêm de um texto de São Basílio [...]. O cânon 8 do pseudo-concílio de Antioquia enquadra-se no mesmo caso; por meio de Gregório de Pessinonte, ela entra na documentação do culto às imagens; sendo duplamente apócrifo. Nosso extrato, portanto, não é necessariamente tão recente quanto à querela das imagens." [12] 


TENTATIVAS DESESPERADAS DE FORNECER AUTENTICIDADE AO PSEUDO-CONCÍLIO NA CONTRARREFORMA


Foi no século XVI que o Concílio Apostólico de Antioquia voltou a ganhar recorrência, por conta do debate teológico entre protestantes e papistas. 

O jesuíta espanhol Francisco Torres (1509-1584), também conhecido como Turrianus, se situa neste cenário como um dos mais apaixonados defensores de todo o arsenal de falsificações da sua Igreja: os Decretos Pseudo-Isidorianos, os Cânones Apostólicos e a própria Doação de Constantino foram defendidos vigorosamente contra os ataques protestantes; sem dúvidas, Torres estava razoavelmente ciente das consequências de se admitir que a Igreja criou, usou e se baseou em documentação fraudada. E foi justamente ele o responsável por encontrar um firmissimum testimonium em favor do Concílio Apostólico de Antioquia [13]; isto é, um antiquissimus codex que continha os cânones encabeçados pela seguinte descrição: 

"Extrato feito pelo santo mártir Pânfilo, do sínodo dos apóstolos em Antioquia; isto é, parte dos próprios cânones, descobertos por ele na biblioteca de Orígenes" [13].

Turrianus introduziu o documento na obra feita em resposta aos Séculos de Magdeburgo (1559), a celébre historiografia eclesiática protestante. Não demorou para que a veracidade do pseudo-Concílio fosse abraçada por dois outros testas-de-ferro do Papado: o Cardeal César Barônio (1538-1607) e Severino Bínio (1573-1641) [14]. Richard Gibbins (1801-1858) menciona ainda outros apologistas romanos que, assim como a nossa tríade, aceitaram acriticamente a composição fraudulenta: Lindanus, Feuardent, o cardeal Paleotus, Getser e Wadding, em obras que se estendem num período de 1560 a 1636 [14]. Que um documento tão escancaradamente falso tenha sido tão popular entre apologistas romanos diz muito sobre o grau de honestidade e credulidade visto por estes indivíduos, nada de novo sob o Sol.

Mas mesmo se desconsiderarmos o fato de que os manuscritos originais contendo tais cânones são todos da Baixa Idade Média (Vallicellan. F. 10, f. 24-26 Coislin 211, f. 278, os mais antigos, são ambos do século XI), as inconsistências só se multiplicam. A tentativa de dar uma origem autêntica à descoberta do documento, isto é, do mesmo ter sido encontrado por Pânfilo de Cesareia (m. 309) é desmontada pelo próprio padre Lejay, que novamente comenta do documento:

"Esta composição é portanto denunciada como um refacimento. Ela também é posterior a Eusébio, apesar da menção no cabeçario referir-se ao bendito Pânfilo e a Biblioteca de Orígenes. De fato, não apenas Orígenes têm quaisquer suspeitas destes cânones e deste Concílio de Antioquia, mas Eusébio positivamente exclui este concílio. Ele relata que apóstolos se reuniram fora de Jerusalém; esta reunião única, cujo local não é indicado, teve como propósito único dar um sucessor a São Tiago um sucessor durante o cerco de Jerusalém, o qual foi Simeão. Não existe nada em comum com este assim chamado Concílio de Antioquia. Eusébio ainda não o conhecia. E esta ignorância é decisiva contra o nosso documento. Eusébio, o amigo e admirador de Pânfilo, o curioso e educado herdeiro de sua biblioteca, não poderia ter ignorado este documento caso ele tivesse encontrado o mesmo nos manuscritos herdados do mártir de Cesareia." [15]

Também é extremamente curioso que, depois de tanto tempo, um documento obscuro afirme derivar sua existência de uma descoberta que não foi conhecida por ninguém. Tomada a posição histórica do cânon iconófilo, nem Origenes nem Eusébio deveriam emitir as posições anicônicas que pronunciaram, tornando toda a história numa grande fábula.

Mas Turrianus preparou outras defesas em prol do Conílio, como a alegação de que o Papa Inocêncio I (r. 401-417) se referiu a um "famoso concílio apostólico" na cidade de Antioquia. Gibbings respondeu satisfatoriamente tais futilidades:

"Uma observação deve ser feita quanto ao argumento-chefe em defesa do Pseudo-Concílio Apostólico de Antioquia. Neste quesito, Turrian e seus sucessores afirmam que o Papa Inocêncio I fez alusão à realização deste sínodo quando referiu-se a Antioquia como o lugar 'ubi et nomen accepit Religio Christiana, et quæ conventum Apostolorum apud se fieri celeber rimum meruit', mas aqui ele sem dúvidas se refere a Atos 11.26; possivelmente tendo se expressado de forma incorreta com respeito ao Concílio de Jerusalém, que enviou cartas aos irmãos em Antioquia (Atos 15:23)." [16]

Se Inocêncio realmente estivesse se referindo ao pseudo-Concílio quando falou de um "famoso concílio em Antioquia", porque simplesmente ninguêm em toda a Idade Antiga e Medieval anterior ao século oitavo fez qualquer menção a este ceélebre sínodo? Como constata Gibbings: "a existência deste interessante sínodo é algo do qual os antigos foram perfeitamente ignorantes". [17]

Mesmo se supussemos o testemunho de Inocêncio, a situação não mudaria em nada, como o próprio Lejay seria forçado a admitir:

"É bem curioso ver que um bispo do Ocicente, ver que um Papa, se referiu a este documento obscuro. Obscuro porque ele permaneceu assim com toda a certeza, dado que em toda a antiguidade e durante toda a Idade Média Inocêncio é o único a saber dele, junto com Gregório de Pessinonte. Não parece que os copistas multiplicaram quaisquer cópias: só temos o manuscrito de Munique publicado por Bickell e outro traduzido por Torres. Ao todo, o concílio têm duas testemunhas e dois manuscritos. É muito pouco para um concílio apostólico." [18]

Ninguém hoje admitiria esta fraude, mas na Contrarreforma valia para proteger Roma e combater os hereges protestantes. Até a nata da apologética romana — como Torres, Barônio e Binio — era capaz de jogar a honestidade para escanteio em prol da inerrância da Igreja.

Caso o Protestantismo fosse varrido, talvez esta crença permanecesse até os nossos dias como parte da Tradição Católica. Os comentários do anglicano Edward Stillingfleet (1635-1699) são bem pertinentes nessa questão:

"Mas Baronius não está contente com exemplo da mulher siro-fenícia na questão das imagens, mas ele mesmo traz o Concílio Apostólico de Antióquia e um venerável decreto feito por eles lá, que ordena aos cristãos fazer imagens de Cristo ao invés de ídolos pagãos; mas nosso conforto é que Petavius descarta isto como uma mera fraude, assim como a maioria das coisas dos gregos tardios, diz ele. Ainda assim, Baronius diz que este cânone foi usado pelo Segundo Concílio de Nicéia, o que manifesta as excelentes autoridades as quais aquele Concílio se amparava. Nicolas de Clemangis está tão longe de pensar que existe algum decreto apostólico neste assunto que ele diz: a Igreja Universal de fato decretou, por consideração aos conversos gentios, que não deveriam haver quaisquer imagens em igrejas; cujo decreto, diz ele, foi posteriormente repelido. Eu gostaria que ele nos contasse por qual Autoridade; e porque outros Mandamentos e Decretos não poderiam ser repelidos também?" [19].

Uma outra outra defesa da fraude, elaborada por Binius, é descrita e comentada pelo reverendo John Mendham, em suas notas sobre o pseudo-Concílio:

"Du Pin diz sobre esses Cânones e este Concílio: - 'Não acrescentarei nada a respeito dos Nove Cânones que também são atribuídos aos Apóstolos, e que se diz terem sido feitos por eles em um certo Concílio de Antioquia, desconhecido durante toda a antiguidade; porque não há dúvida de que são fictícios: nem são atualmente mantidos [como autênticos] por ninguém.' - Eccles. Hist. , vol. I. p. 16 

Turrianus considera que esta citação de Gregório proporciona um firmissimum testimonium em favor deste Concílio de Antioquia; no entanto, o Concílio, onde foi apresentado, passa por ele em silêncio, nunca fazendo alusão a ele, por mais que precisassem de testemunhos em seu favor. Binius nos diz que este Cânon, juntamente com o outros, pode ser encontrado nas 'Constituições de Clemente', cap. XXV. Lib. 7: lugar adequado para eles, pois as Constituições são tão falsas quanto os próprios Cânones. 'As Constituições (diz Jortin) são uma mistura de antigos tratados misturados, ampliados e adulterados sem muita inteligência ou julgamento, por algum compilador posterior à época de Constantino.' -  Remarks on Eccles. Hist. , vol. I. p. 153" [20]

As Constituições de Clemente aqui significam as controversas Constituições Apostólicas, um compilado de oito livros de disciplina eclesiástica, ritos e outros aspectos doutrinários falsamente atribuídos aos apostólos e a Clemente de Roma (35-99), que supostamente narram tais documentos como se eles mesmos os tivessem escrito.

Porém, enquanto Mendham desconsiderou — corretamente — a autenticidade dos cânones do pseudo-Concílio por sua atribuição à uma documentação falsa, nós podemos ter uma experimentação única da honestidade dos apologistas católicos buscando esses nove cânones nas Constituições, algo até então não tentado.

Estaria Binius mentindo? Uma investigação detalhada em todos os oito livros das Constituições Apostólicas constatou: sim, ele estava! A referência do livro VII, cap. XXV leva tão somente a orientações quanto a Santa Ceia, sem qualquer referência à estes cânones. 

Mas talvez exista uma chance deles constarem no apêndice do livro VIII, onde encontramos "Cânones Eclesiásticos dos Mesmos Santos Apóstolos". O problema é: nem lá encontramos quaisquer referências à estes nove cânones. 

No fim das contas, o padre Binius simplesmente fraudou uma referência. A atribuição às Constituições foi uma decisão esperta, tanto porque existem "cânones apostólicos" nesta lista de documentos apócrifos quanto porque forçaria um contestador a checar todo o imenso material daqueles documentos, pelo menos para se assegurar de que o apologista alemão simplesmente não errou a referência. Não foi simplesmente uma mentira desesperada: Binius fraudou a verdade se valendo de uma astúcia maliciosa e satânica. Esses são os referenciais da apologética papista: doutores mentirosos, negacionistas, desonestos e falsificadores.


CONTRADIÇÕES E INTERPOLAÇÕES NAS DIFERENTES VERSÕES ROMANISTAS DO DOCUMENTO CONCILIAR


Nada pode ser tão ruim que não possa ficar pior. Este é precisamente o caso com as versões dos cânones do nosso pseudo-Concílio. Como alguns leitores mais atentos puderam notar, existem diferenças irreconciliáveis entre os cânones fornecidos por Binius e o citado por Gregório de Pessino: Gregório menciona apenas que "pura imagem teândrica de Nosso Senhor Jesus Cristo" tinha sido permitida pelos apóstolos, ao passo que a versão de Binius adiciona a sentença: "assim como as imagens de Seus servos". Essa interpolação foi feita justamente para ampliar os termos iconófilos para padrões mais próximos dos seguidos pela Igreja Romana; do contrário, os apóstolos teriam vetado grande parte da iconografia dos nossos falsificadores. Gibbings também observa:

"Os apóstolos turriânicos parecem ser ainda mais explícitos no que diz respeito às imagens do que seus predecessores citados no concílio niceno: porque este último recomendou meramente 'Deivirilem statuam Domini nostri Jesu Christi' enquanto a edição mais moderna deste importante mandato inseriu os epitetos 'manufactam, impermixtam' e adicionou como post-script 'Ipsiusque Servorum ; contra Idola et Judæos . Ne que errent in Idolis ; neque similes fiant Judæis', assim introduzindo um preceito relativo às imagens dos santos e recomendando que os cristãos adotassem a via media entre a idolatria grosseira dos pagãos e a rejeição completa de imagens que se situava entre os judeus. " [21]

Recapitulando, então, a sequência de fraudes: I) um escrito fraudulento foi atribuído aos apóstolos; II) no século oitavo, sua interpretação foi torcida em prol da causa iconódulas, tendo então convencido o iconoclasta Gregório de Pessino a se tornar um cultista de imagens; III) manuscritos posteriores inventaram nove cânones para dar liga à idéia de autenticidade; IV) um cabeçario foi elaborado para dar origem fidedigna à sua descoberta; V) Turrianus e Binius, ou talvez os copitas católicos medievais, interpolaram o documento adicionando referências às imagens dos santos; VI) também foram interpoladas passagens intensificando a iconofilia e distinguindo os cristãos de grupos idólatras e dos judeus anicônicos.

Este hexagrama de falsificações é um exemplo perfeito da desonestidade contínua dos adeptos de seitas. Um verdadeiro recorta-e-cola de falsificações e defesas crédulas de documentos duvidosos. Mas parafraseando Binius: como o documento seria falso se foi usado por "autoridades tão excelentes" em Niceia II? A resposta é que essas autoridades estavam longe de serem excelentes, mas constituiam tão somente falsos-mestres num conventículo idólatra e vigarista sob a inspiração sobrenatural do Pai da Mentira.


CONCLUSÃO


Que um concílio tão importante desses ficou fora da Bíblia é algo realmente sem nenhuma explicação plausível, senão o de falsificação. Também é estúpido que os apóstolos venham a criar cânones de coisas que já foram determinadas na década passada durante o Concílio de Jerusalém (51 d.C.). Mas veja, estava na "Tradição Apostólica", conservada oralmente pelos "guardiões da Igreja de Cristo"

Pode-se dizer que este caso refuta perfeitamente a Infalibilidade da Tradição, uma vez que foi introduzida, perdida, resgatada na Contrarreforma e novamente perdida na sua cadeia de transmissão. Contrariamente ao que o próprio Concílio de Nicéia II decreta:

"Não diminuímos nada, nem adicionamos nada, mas Nós perservamos imutavelmente todas as coisas que pertencem à Igreja Católica" [22].

O Papa João Paulo II, agora santo, também confirmou estas coisas no aniversário ecumênico de 1200 anos de Nicéia II, em 1987:

"Niceia II solenemente afirma a existência de 'tradição eclesiástica escrita e não-escrita' como referência normativa para a fé e disciplina da Igreja. Os Padres afirmaram que eles queriam 'conservar intactas todas as tradições da Igreja que foram confiadas (a eles), seja escrita ou não. Uma dessas consistia precisamente na pintura de ícones, em conformidade com a carta da pregação apostólica." [23]

Parece que não foram bem sucedidos com o pseudo-Concílio. Mas isto mostra que qualquer coisa pode entrar na tradição oral, se existir motivação suficiente. E isto porque ela não é Infalível e nem faz parte da Regra de Fé. Como nós sempre ensinamos: Sola Scriptura.


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS:


[1] MENDHAM, John. The Seventh General Council, the Second Council of Nicea, in which the worship of images was established: with copious notes from "Caroline Books", compiled by the order of Charlemagne for its confutation. Londres: 1850. p. 19. 

[2] ibid, p. 20.

[3] HARNACK, Adolf. The Expansion of Christianity in the First Three Centuries, vol. 1, cap. 5. trad. MOFFAT, James. Boston: Wipf and Stock Publishers, 1998. p. 91-92. 

[4] PADRE PAULO RICARDO. A verdadeira história do Papai Noel. Disponível em: <https://padrepauloricardo.org/blog/a-verdadeira-historia-do-papai-noel>. Acesso em 10 de fevereiro de 2021.

[5] PEARSE, Roger. The Apocryphal Canons of a Supposed Apostolic Council of Antioch. Disponível em: <https://www.roger-pearse.com/weblog/2020/01/20/the-apocryphal-canons-of-a-supposed-apostolic-council-of-antioch/>. Acesso em 10 de fevereiro de 2021.

[6] LEJAY, Paul. Le Concile apostolique d’Antioche. Paris: Revue du clergé français, vol. 36, 1903. p. 343. 

[7] MENDHAM, ibid, p. 18-21.

[8] Ibid, p. 395.

[9] Ibid, p. 21.

[10] LEJAY, ibid, p. 351.

[11] PEARSE, ibid.

[12] LEJAY, ibid, p. 350-351.

[13] PEARSE, ibid.

[14] GIBBINGS, Richard. Roman Forgeries and Falsifications, Or, An Examination of Counterfeit and Corrupted Records: with Especial Reference to Popery. Londres: John Petheram, 1849. p. 139.

[15] LEJAY, ibid, p. 346.

[16] GIBBINGS, ibid, p. 140.

[17] Ibid, p. 136-137.

[18] LEJAY, ibid, p. 352.

[19] STILLINGFLEET, Edward. A defence of the discourse concerning the idolatry practised in the Church of Rome in answer to a book entituled, Catholicks no idolators. Londres: Robert White, 1676. p. 526-527.

[20] MENDHAM, ibid, p. 20.

[21] GIBBINGS, ibid, p. 138.

[22] DECRETO DO SEGUNDO CONCÍLIO DE NICEIA, 787. Fordham University. Disponível em: <https://sourcebooks.fordham.edu/source/nicea2-dec.asp>. Acesso em 11 de fevereiro de 2021.

[23] JOÃO PAULO II, Papa. Duodecium Saeculum. Cap. 2, § 5. 4 de Dezembro de 1987. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/en/apost_letters/1987/documents/hf_jp-ii_apl_19871204_duodecimum-saeculum.html>. Acesso em 11 de fevereiro de 2021. 

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