Agostinho e a Excelência do Culto Anicônico (VERSAO FINAL MUDADA)

Ícone de Santo Agostinho no retábulo de Cambridge (1320-25). Contradizendo o imaginário romanista, bispos do quarto século não utilizavam mitras, capas e outros acessórios litúrgicos desenvolvidos em pontos mais tardios da Idade Média.


INTRODUÇÃO


É quase impossível falar de teologia latina sem tratar de Agostinho de Hipona (354-430). Para o bem ou para o mal, o bispo berbere é indiscutivelmente o favorito dos círculos teológicos ocidentais, desfrutando de uma imensa popularidade tanto entre romanistas quanto entre protestantes; o que, é claro, continua a suscitar, na massa mais militante, a acusação de que os protestantes querem "sequestrar" Santo Agostinho. 
 
Tal acusação, quando vista à luz dos anseios e preceitos romanistas, é até compreensível: afinal de contas, se for verdadeira a alegação de que um de seus principais doutores precedeu e testemunhou diversas doutrinas da Reforma Protestante no crepúsculo da Antiguidade Tardia — como bem provaram os reformadores — tal atestado abalaria profundamente as credenciais da Igreja Romana como guardiã da fé antiga e imutável. 

Debates acalorados são, consequentemente, travados nos mais diversos campos da teologia agostiniana, como justificação, eleição, ceia, eclesiologia etc. Mas, curiosamente, pouco se fala da posição de Agostinho quanto ao aniconismo e à iconologia; seja pelo julgamento temerário romanista ao presumir que ele era um iconódula, conforme sustenta seu dogmatismo clássico, seja pelos protestantes pensarem que ele não tem nada a falar sobre o assunto. 
 
Se a mera citação de Agostinho em uma discussão teológica costuma ser tratada com uma importância pivotal, capaz de calar ou minar seriamente a posição de um inimigo, porquê não fazer o mesmo com a postura agostiniana relativa às imagens? É claro que protestantes, por conta da Sola Scriptura, não sofrem nenhum prejuízo real por constatarem heterodoxia na figura do bispo de Hipona. Mas católicos romanos, por virtude de sua Tradição Infalível e de suas canonizações igualmente infalíveis, não podem arcar teologicamente com o ônus de um Santo Agostinho não-iconódula.

Contudo, se tal debate se tornou raro, a razão para tal consiste especificamente na dificuldade de se rastrear sistematicamente o pensamento do bispo de Hipona neste assunto. A densidade da opera omnia agostiniana só reforça o problema de seu estudo, cuja ocorrência de conclusões errôneas tende a disparar quando tal estudo é feito por indivíduos que ignoram a abundância de evidência ou que desonestamente obscurecem conceitos rudimentares do debate, que sequer são exatamente complexos.

E se esta dificuldade desincentivou protestantes dos últimos dois séculos de estudar e expor a posição agostiniana quanto aos ícones sacros, por outro foi virtualmente ignorada pelos papistas. O recuo protestante foi decisivo para fertilizar o terreno apologético dos papistas mais desonestos, que decidiram alardear sem quaisquer risco de reprimenda a equivalência do pensamento de Agostinho com o seu próprio. Um exemplar mais catedrático que personifica exatamente o exposto é a dissertação do padre Adrian Fortescue, autor da Enciclopédia Católica (1910):  
 
"Santo Agostinho (m. 430) se refere diversas vezes a pinturas do Nosso Senhor e dos santos nas igrejas (e.g. "De cons. Evang.", X em P.L., XXXIV, 1049; Resposta a Fausto, XXII.73); ele diz que algumas pessoas até mesmo as adoram ("De mor. eccl. cath.", XXXIV, P.L., XXXII, 1342)." [1]
 
Será que o padre Fortescue está sendo honesto quando diz Agostinho faz diversas referências à templos com imagens de Cristo e dos santos? Todas as três referências fornecidas, se realmente avaliadas, na verdade comprovarão o contrário; e não somente isto, elas tornarão cristalina o quanto uma obra tão magistral para o Romanismo quanto a Enciclopédia Católica mente com o pouco que tem para fazer mentiras que nem são, em si, mentiras cabeludas: o padre mente pouco com o pouco que tem especificamente porque o grau da mentira aqui é consciente e estratégico. Será nosso trabalho tratar destas e de todas as outras evidências do posicionamento de Agostinho no assunto, determinando — ou não — seu aniconismo e transparecendo assim todos os erros e as fraudes que a Apologética Romanista aplica com o seu próprio público correligionário, talvez este o grau mais vigarista de enganação.


CIDADE DE DEUS E A TEOLOGIA COMPARADA DO CRISTIANISMO COM O PAGANISMO CLÁSSICO


A obra "Sobre a Cidade de Deus contra os Pagãos", de 426 d.C., é considerada uma dos trabalhos mais influentes de Agostinho de Hipona, ainda que seja um escrito publicado muito tardiamente, durante o período de colapso do Império Romano Ocidental, do qual Agostinho fazia parte. Ela é uma das evidências mais importantes para o trato do pensamento agostiniano sobre ícones, muito embora ela estivesse ocupada com o criticismo pagão quanto à suposta culpa do Cristianismo na decadência do Império, um tópico ainda levantado por detratores da religião cristã — embora decadente e eventualmente extinto no meio historiográfico desde o surgimento da Ciência Histórica em si.
 
Esta obra de apologética anti-pagã, assim como tantas outras no gênero patrístico


O CAPÍTULO SÉTIMO EM "DE FIDE ET SYMBOLO"


De acordo com Kevin Knight, editor católico da New Advent, "A Fé e o Símbolo" foi um antigo sermão pregado por Agostinho — nesta época presbítero — em 393 d.C., durante o Concílio de Hipona-Regius [2]. O próprio se refere ao mesmo em seu Retratações, um escrito tardio:

"Mais ou menos no mesmo período, na presença dos bispos — que estavam realizando um Concílio plenário de toda a África em Hipona-Regius —, estes me ordenaram para que eu realizasse, como presbítero, um discurso no assunto da Fé e do Símbolo. À pedido urgente de alguns daqueles que mantinham uma intimidade e afeto mais que o usual, eu transformei esta Disputatio em forma de livro" [3]

Isto nos fornece um contexto muito importante:

I) Agostinho pregou esse sermão na ocasião solene de um Concílio Plenário da Igreja que representava toda a África.

II) O conteúdo deste sermão, requisitado pelos próprios bispos conciliares, não foi repudiado ou condenado pelo Concílio e nem pela Igreja na África. Ao invés disso, a apreciação foi tamanha que Agostinho foi pressionado a transformá-lo em um documento. 

III) O que quer que Agostinho diga sobre imagens aqui, reflete também a posição de toda a Igreja Cristã na África do final do século IV e em conformidade com um concílio solene da Igreja. Em síntese, o ensino de Agostinho, se não for ortodoxo para toda a Igreja de seu tempo, é ortodoxo para toda uma gigantesca província da Igreja naqueles tempos. Logo, não reflete qualquer peculiaridade da figura de Agostinho, mas de todo um continente.

III) Agostinho não mudou de opinião nem se retratou do que escreveu aqui, conforme ele mesmo confirma o escrito em seu livro tardio "Retratações" [4].

A Paulus, editora católica responsável pela tradução que iremos usar aqui, também concorda com o contexto exposto anteriormente:

"A obra A fé e o símbolo (De fide et symbolo), como outras duas que compõe este volume, é, em sua origem, um sermão. Agostinho, contando cerca de dois anos de sacerdócio, pronunciou-o num Concílio Plenário dos bispos africanos em Hipona, em 8 de outubro de 393. Não era usual que um sacerdote fizesse a pregação, menos ainda aos bispos reunidos num Concílio; no entanto, os bispos mesmos determinaram que ali assim fosse" [5].

Esclarecido isto, prossigamos ao nosso capítulo 7, parágrafo 14:

"Glorificado, esta à direita do Pai

VII. Cremos também que esteja assentado á direita do Pai. Assim também não se deve pensar em Deus Pai como delimitado em forma humana, de modo que, refletindo sobre ele, nos venha em mente um lado direito e um lado esquerdo; e também não se deve pensar que Ele, que se assenta à direita do Pai, o faça com os joelhos dobrados, para que não caiamos no sacrilégio que o Apóstolo execrou naqueles que transformaram a glória de Deus incorruptível em uma imagem de homem corruptível. É coisa nefasta colocar em um templo cristão tal imagem de Deus; é ainda mais nefasto colocá-lo no coração, que é onde está o verdadeiro templo de Deus, se é purificado da cupidez terrena e do erro. Deve-se atender à expressão "à direita como se fosse dito 'na suma beatitude', onde há justiça, paz e alegria; assim como se diz que à esquerda são colocados os bodes, isto é, na miséria, devido às iniquidades, desgraças e tormentos. Logo, quando se diz que Deus está sentado, não se refere à posição dos membros, mas ao poder de julgar, do qual sua majestade nunca carece, concedendo sempre coisas dignas aos que são dignos, ainda que no juízo final muito mais se manifestará entre os homens a claridade do Filho unigênito de Deus, juiz dos vivos e dos mortos." [6]

Os trechos são claros:

1) Uma vez que sequer temos o direito de pensar em uma imagem mental de Deus Pai, menos ainda temos de fazer uma imagem Dele.

2) Agostinho cita Romanos 1:23 interpretando que as Escrituras proíbem que fazer imagens de Cristo, o Deus Filho, por cometerem sacrilégio; isto é, ícones corruptíveis do Cristo são ofensivos e desrespeitam Sua Glória Infinita.

3) Se imagens de Cristo são sacrílegas per se, mais ainda são que elas sejam colocadas em igrejas. Isto é, Agostinho ecoa o aniconismo de Epifânio, Eusébio, Origenes e de tantos outros que o precederam. 

4) Ele ainda ecoa o tema de imagens no coração, algo que definitivamente é recorrente aos iconódulas e até aos iconófilos.

Nada do que Agostinho prega é inovação, e o fato de que a Igreja na África, na ocasião solene de um Concílio Plenário, ter apreciado o seu sermão, indica que, mesmo nessa época, setores tão extensos quanto um continente inteiro ainda tinham, por excelência, um ensino eclesiástico aniconista.

Agostinho certamente cai em todos os anátemas proferidos aos iconoclastas pelos concílios, tratados e epístolas dos iconódulas. Novamente, isto prova que a iconodulia não é apostólica, que não era universalmente crida e que o Magistério Infalível dos iconódulas, na verdade, errou canonizando um herege; em síntese, o Magistério não é Infalível, tal como a Tradição. Nesse efeito dominó, toda a igreja romana, assim como nas orientais que cultuam Agostinho caem por terra.

É curioso como o padre Fortescue vasculhou cada pormenor nos escritos de Agostinho, mas não mencionou A Fé e o Símbolo. A bem da verdade, ele não disse que Agostinho apoiava imagens na igreja, mas utilizando de uma sutileza perniciosa, disse que ele meramente as descreve. Mas note, no mesmo parágrafo ele afirma que "a ideia de que a Igreja nos seus primeiros séculos eram de qualquer forma preconceituosa contra imagens e estátuas é a mais impossível das ficções" [7].

O efeito é o mesmo, dado que os fiéis católicos vão ser levados a crer que Agostinho aprovava essas imagens. Tudo no texto é construído para levar a essa conclusão. Mas sejamos sinceros, quem se importa se mais uma mentira for ensinada aos católicos romanos em um trabalho magistral e com todas as devidas credenciais da censura eclesiástica? O jugo de opressão e mentiras com as quais a igreja romana e seus chacais submetem o povo sem instrução é obsceno, beirando ao satanismo. Parodiando o padre Pio de Pietrelcina: "Não sabeis que o papismo também possui um fundador sobrenatural? Sabeis agora, trata-se de um anjo, e seu nome é Satanás" 


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS:

[1] FORTESCUE, Adrian. Veneration of Images. The Catholic Encyclopedia. Vol. 7. Nova Iorque: Robert Appleton Company, 1910. Disponível em: <http://www.newadvent.org/cathen/07664a.htm>. Acesso em 14 de novembro de 2020.

[2] SANTO AGOSTINHO. Of Faith and Creed. org. KNIGHT, Kevin. New Advent. Disponível em: <https://www.newadvent.org/fathers/1304.htm>. Acesso em 15 de novembro de 2020.

[3] Ibid.
 
[4] RETRACTATIONUM S. AUGUSTINI, cap. XVII. In: PATROLOGIA LATINA, vol. 32, col. 612, ed. MIGNE, Jacques Paul. 

[5] FREITAS, Heres Drian de O. A Fé e o Símbolo, Introdução. In: editora Paulus, vol. 32: Patrística - A fé e o símbolo | Primeira catequese aos não cristãos | A disciplina cristã | A continência, Santo Agostinho. p. 8.

[6] SANTO AGOSTINHO. A Fé e o Símbolo. Cap. 7, §14. In: editora Paulus, vol. 32. p. 27-28.

[7] FORTESCUE. Ibid.

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