Gregório Magno e a Epístola a Januário: o Recurso dos Ignorantes


Apologistas modernos sempre recorrem ao Papa Gregório como prova da antiguidade da doutrina dos ícones sagrados. E com isso, é claro, eles basicamente se referem à 2ª Epístola a Sereno de Marselhas, esperando que leitores incautos não reparem que um documento de 600 d.C defendendo o uso exclusivamente didático de imagens não é, de forma alguma, ponto a favor do culto às imagens; especialmente com a condenação daquilo que Gregório chama de adoração de imagens, termo pelos quais o Papa Adriano I e diversos documentos iconodulas se referem para o culto às imagens.

Eles, é claro, não podem apelar à Epístola a Secundino, pois se trata de uma interpolação comprovada. O último recurso dos apologistas romanos é apelar para a epístola ao bispo Januário de Caralis, na Sicília como documento auxiliar à 2ª Sereno. Mas, como veremos, essa tentativa não só é fútil como, mesmo sob o uso dos iconodulas romanos do século VIII, a epístola nunca foi posta como uma grande referência.


A EPÍSTOLA A JANUÁRIO DE CARALIS


A fonte de origem por trás desta epístola advém do conhecido Registrum Epistularum, uma compilação documental papal que contém tudo de verdadeiro e falso em um extenso período de tempo, até ser finalmente compilada e impressa para uso comum, no século XVI. Contudo, esta epístola não recebe grandes comentários dos eruditos atuais quanto à questão de fraude, o que nos dá certa responsabilidade, pelo menos inicialmente, de tratarmos como um documento a ser investigado de forma legítima. 

A epístola a Januário (Livro IX, carta 6) consiste em uma carta do Papa a uma violação de uma sinagoga por parte de radicais. A mesma segue:

“Os judeus que vieram para cá de sua cidade queixaram-nos que Pedro, que foi levado pela vontade de Deus, de sua superstição ao culto da fé cristã, tendo levado consigo certas pessoas desordenadas, no dia seguinte ao seu batismo, isto é, no dia do Senhor e do festival pascal, com grave escândalo e sem o seu consentimento, tomaram posse de sua sinagoga em Caralis, e colocaram lá a imagem da mãe de nosso Deus e Senhor, a venerável cruz, e a veste branca (birrum) com o qual ele tinha sido vestido quando ele se levantou da fonte. Quanto a tal coisa também as cartas dos nossos filhos, o glorioso Magister militum Eupaterius, também magnífico governador, piedoso no Senhor, concordou sobre esse mesmo relato. Eles também dizem tal ato acrescentam ainda que este tinha sido previsto por você, e que o referido Pedro tinha sido proibido de se aventurar nisto. Ao saber isso, te elogiamos bastante, pois, como se tornou um verdadeiro e bom sacerdote, você desejou que nada fosse feito onde só culpa poderia surgir. Mas, uma vez que não se misturou em nada nestes atos errados, você mostra que o que foi feito desagradou-lhe; Nós, considerando a tendência de sua vontade neste assunto, e ainda mais o seu julgamento, viemos exortar-vos que, depois de ter remover dali com reverência a imagem e cruz, você deve restaurar o que foi violentamente tirado" [1]

O argumento do apologista Rafael Rodrigues é: "São Gregório chama a cruz de 'venerável cruz' indicando claramente a veneração que era devida a santa cruz" [2]. Rodrigues, curiosamente, limita-se a tratar a carta como evidência da veneração de cruzes, mas não de imagens. Isto é um aspecto extremamente curioso, porque o uso iconodula histórico desta epístola foi justamente de afirmar o culto às imagens e à cruz. E embora Rodrigues contradiga o próprio papa Adriano neste quesito, nossa exposição será focada no argumento amplo: que a epístola evidenciava que as imagens e a cruz deveriam ser cultuadas.

Temos, então, as seguintes questões: o papa Gregório se referia a venerável como forma de tratamento ou como indicativo de culto? Quando o Papa fala para remover os objetos com reverência, ele se refere à retirada de forma ordenada e respeitosa com relação ao espaço religioso judaico ou como orientação de culto aos mesmos?

Em conversa particular, o teólogo Bruno Lima comentou a respeito do estado da questão:

"Talvez, ele acreditasse que esse ícones devessem ser tratados com respeito. Mas dai para dizer que eles devem ser cultuados, existe um caminho longo a seguir. Acho que você pode construir um argumento da seguinte forma: procurar em outras obras de Gregório o mesmo termo e verificar se ele usa o mesmo em contextos que claramente não envolvem culto. 

Você tem um argumento de qualquer forma, o lado católico também precisa de um argumento, e eles precisam de mais do que isso. Na verdade, você está numa posição de vantagem, uma vez que ele defende apenas o uso didático. Você pode simplesmente dizer que eles precisam provar o algo a mais, porque você já provou seu ponto quanto ao uso didático. Porque deveríamos tomar isso como evidência de que a cruz deveria ser cultuada? Deixe para eles o trabalho de construir um argumento favorável, porque só esses termos são insuficientes."

De fato, estamos em posição de vantagem provando a posição claríssima de Gregório em Sereno, também mostrando como a percepção de ausência de evidência iconodula nos escritos gregorianos causou a falsificação documental em Secundino. Ainda assim, mostrar esta terceira tentativa frustrada descredibiliza ainda mais os nossos oponentes, colocando nossa exposição em maior destaque. Finalmente, podemos provar que Gregório usava o termo venerável como pronome de tratamento respeitoso, ao invés de indicativo de culto:

"Sobre qual assunto, vendo que André, nosso irmão de venerável memória, metropolita de Nicópolis, com o suporte de uma ordem imperial ..." [3]

"O venerável Paulino, bispo da cidade de Taurum (Tauranium in Brutia), nos disse que os monges dele foram dispersos em razão de invasões barbáricas [...]. Saiba que nós temos mostrado este problema ao venerável Felix, bispo da mesma cidade ..." [3]

"Agapitus, abade do mosteiro de São Jorge, nos informou que ele sofre muitas ofensas da Sua Santidade [...]. Agora, se assim procede, nós exortamos que você desista desta falta de humanidade, permitindo que os mortos sejam enterrados e missas sejam celebradas lá sem futura oposição, a fim de que o venerável Agapitus, anteriormente citado, não seja compelido a reclamar ..." [3]

Gregório ocasionalmente se refere a outros clérigos, assim como ascetas com o prefixo "venerável", não porque eles eram cultuados, mas como um pronome formal de tratamento. O coup de grace, contudo, vem de uma carta de Gregório ao mesmo Januário, bispo de Caralis, porém numa outra correspondência (Epístola X):

"Que este mal seja removido por sua Fraternidade por uma correção simples; isto é, cuidadosamente escolhendo um homem de vida e maneiras corretas, de tal idade e posição que não permita ascender qualquer suspeita ruim dele, para que, com temor a Deus, ajude as internas destes mosteiros para que elas não mais sejam permitidas a vagar, contra sua Regra, por qualquer causa pública ou privada, além dos seus veneráveis recintos [...]. Veio ao nosso conhecimento também que escravos e escravas de judeus, tendo fugido para encontrar refúgio na Igreja por conta de sua fé, são ou devolvidos aos seus mestres ímpios ou indenizado a estes de acordo com seu valor, ao invés de serem restituídos. Nós exortamos, portanto, que de forma alguma este mal costume continue; mas se alguém for escravo de judeus, tendo escapado para encontrar refúgio nos lugares veneráveis, que não sofra qualquer grau de preconceito" [3]

De forma alguma Gregório poderia cultuar mosteiros ou igrejas, ou crer que eles devessem receber todo o arsenal de práticas cúlticas que os papistas dão às imagens. Evidentemente, venerável é utilizado como um pronome, seja para pessoas, seja para edifícios religiosos, mesmo daqueles que não se tratavam de templos. A associação do termo venerável como indicativo de culto, portanto, não tem base nos escritos gregorianos e só é eficiente na medida em que se é completamente ignorante ou desconhecido aos seus escritos; isto é, tanto Rodrigues quanto o papa Adriano.

Rodrigues, contudo, parece indicar de forma implícita que a reverência que Gregório se refere no final do enxerto é ao próprio templo judaico, e não às imagens em si. O que faz sentido, considerando que o bispo de Caralis estaria corrigindo uma atitude criminosa realizada em um templo do povo judeu, alimentando ressentimentos legítimos contra os ofendidos. É sensato, portanto, orientar que o processo de remoção seja feito de forma respeitosa. Interpretando de maneira que certos papistas querem, teríamos uma contradição linguística onde os homens do bispo estariam cultuando as imagens na sinagoga, ao invés de removê-las, que é o que Gregório está ordenando, no fim das contas. 


A SUB-IMPORTÂNCIA DA EPÍSTOLA A JANUÁRIO COMO "PROVA" DO ICONODULISMO GREGORIANO


Mas a questão histórica ainda merece dissertação. Durante o século VIII, a epístola foi utilizada pelo Papa Adriano juntamente com as outras três cartas gregorianas (ie. 1ª e 2ª Sereno e a interpolação de Secundino). Uma observação curiosa, porém, é que se hoje a epístola a Januário serve de evidência auxiliar, dependendo da ignorância do leitor sobre o uso do termo "venerável", na própria época de Adriano a epístola tinha papel subjacente, talvez até menos importante, que o resto das evidências levantadas a favor da tese de iconodulismo gregoriano:

"O abade franco Adalard de Corbie requisitou ao monge lombardo Paulo, o diácono, para selecionar cartas do Papa, o que ele fez entre 786/7 e 790, tendo voltado da corte de Carlos Magno para a Itália. Esta coleção ficou conhecida como Collectio Pauli (São Petersburgo, Library M.E. Saltykova Shchedrina, ms. F.V.I. 7). Além de cartas relacionadas com questões francas e bizantinas, e outras sobre assuntos administrativos e jurisdicionais, em sua coleção Paulo também inclui duas cartas que Gregório escreveu sobre a função das imagens sagradas, uma ao bispo de Marselhas e outra para Secundino."[4]

Como podemos ver, na seleção dos ensinos de Gregório sobre imagens, a epístola de Januário sequer figurou. Mas não é só isto, na apologia de Adriano a Carlos Magno, assim são dispostas as epístolas gregorianas:

"Referências às cartas a Sereno, por exemplo, são usadas para apoiar as próprias declarações de Adriano que imagens eram comparáveis à Escritura, que elas permitiam aos iletrados ler aquilo que elas não podiam em livros e ajudavam seus observadores, assim como alegações de que Gregório respeitava e venerava 'santas imagens' e que estas imagens, como a Escritura, deveriam ser guardadas em memória e veneração daqueles que são descritos nelas. A carta a Januário e a interpolação também são notadas como evidências de que Gregório cria que imagens merecem alguma forma de veneração, e a interpolação por conta própria é mencionada para defender a declaração de Nicéia II [...]. A última sessão da carta de Adriano traz todos os quatro textos gregorianos juntos - a 1ª e 2ª epístola de Sereno, a epístola a Januário e a interpolação - para sustentar as doutrinas de que as imagens dos santos demonstram amor aos santos e a Deus e são legitimamente cultuadas, 'como Gregório ensinou', através de beijos e de 'saudação humilde' [honorabilem salutationem reddere].
[...]
 A ponte entre os ensinos de Gregório, produtos do final do século VI, e o iconodulismo romano do século VIII foi parcialmente construído com a interpolação da carta a Secundino." [5]

Esta carta nunca é utilizada sozinha e desenvolve o papel menor nos esforços do Papa, indicando que ela não era uma referência muito útil para a tese, mesmo naquela época. Quando posta em comparação com a carta a Secundino, a última interpolação é "muito mais frequentemente mencionada" [6]. Rigorosamente falando, a falsificação em Secundino exerceu a proeminência primaz na apologia papal, seguida pelas cartas de Sereno e, finalmente, a epístola de Januário com o papel mais inferior.  

"Apesar da importância que a interpolação tinha para Adriano e para o Concílio de 769, contudo, é claro que Adriano, pelo menos, também leu as cartas a Januário e Sereno através do filtro dos ensinos romanos iconodulistas" [7]


O PARECER DE MENDHAM À EPÍSTOLA


Tradutor de todo o Segundo Concílio de Nicéia, devidamente acompanhado de referências da réplica carolíngia e da respectiva tréplica papal, Mendham faz atestado extremamente pertinentes quanto à natureza da carta a Januário: 

"Esta epístola já foi muito satisfatoriamente provada, por Du Pin, Dr. James, e outros, estar interpolada, especialmente naquela parte onde Adriano se escora como prova" [8].

Embora não saibamos que autores o rev. Mendham, em meados do século XIX, cita como "outros", os dois nomes citados são bem ilustres: Thomas James, no seu antigo Corruption of the Fathers (1612); e o História Eclesiástica (aprox. 1700 d.C), do católico galicano Luis Ellies Dupin.

Considerando a condição prestigiosa de Mendham, que é a principal referência acadêmica secular no seu trabalho anglófono com Nicéia II, assim como sua precisão em identificar falsificações documentais  vide a interpolação de Secundino , a possibilidade de interpolação merece ser tratada como uma questão real.

Eu optei por não necessariamente tratar a epístola como fruto de uma interpolação por não receber muita atenção dos acadêmicos modernos neste quesito. De qualquer forma, o conteúdo, independente de fraude, não constitui qualquer prova séria de iconodulismo gregoriano. 

Não só isso, mas mesmo certos apologistas católicos não fazem uso da epístola para provar o culto às imagens, mas sim a veneração da cruz.

Talvez o fato de ser uma interpolação explique por que ela não constou na seleção documental de Paulo, o diácono. Talvez o fato do Libri Carolini (793) ter apenas a 2ª epístola a Sereno, não tendo tratado das epístolas de Januário e Secundino [9], possa significar que esta última, de fato, era tão interpolada quanto a outra.

Pelo menos, ela tem o direito de figurar como uma menção de honra na lista de fraudes promovidas pelos iconodulas.


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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·        REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS


[1] SCHAFF, Philip. WACE, Henry. 
Nicene and Post-Nicene Fathers, Second Series, vol XIII. Nova Iorque: Christian Literature Publishing Co., 1898.

[2] RODRIGUES, Rafael. Pais da Igreja e as imagens e relíquias Sagradas. Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/controversias/623-pais-da-igreja-e-as-imagens-e-reliquias-sagradas >. Acesso em 26 de agosto de 2020.

[3] THE SACRED WRITINGS OF GREGORY THE GREAT (Annotated Edition). Jazzybee Verlag, 2012. 

[4] DELL'ACQUA, Francesca. Iconophilia: Politics, Religion, Preaching, and the Use of Images in Rome, c.680 - 880. Cap. 12.

[5] CHAZELLE, Celia M. Memory, Instruction and Worship: "Gregory's" Influence on Early Medieval Doctrines of the Artistic Image. apud CAVADINI, J. C. Gregory the Great: A Symposium. University of Notre Dame Press, 2015. Cap. 10. p. 186-187.

[6] ibid. p. 184.

[7] ibid. p. 187.

[8] The Seventh General Council, the Second Council of Nicea, in which the worship of images was estabilished: with copious notes from "Caroline Books", compiled by order of Charlemagne for its confutation. Tradução do Rev. John Mendham. Londres: 1850. p. 187-188.

[9] CHAZELLE. ibid. p. 188.

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