Cláudio de Turim, um bispo iconoclasta (por Simonetta Carr)

O texto a seguir deve sua autoria a Simonetta Carr, autora renomada e premiada, cristã protestante da tradição reformada italiana, especializada na tradução e divulgação de material protestante entre os idiomas inglês e italiano.
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“Desafiando o preceito da Verdade, eu encontrei todas as igrejas cheias daquelas abominações relaxadas - imagens. Já que todos estavam cultuando-las, eu facilmente me comprometi a destruí-las.” 

Essas não foram as palavras de um reformador protestante. O autor delas era um bispo do século IX: Cláudio de Turim.

            Natural da Espanha, Cláudio foi instruído em Lyon, França. Mais tarde, tornou-se capelão de Luís, o Piedoso, filho de Carlos Magno e rei da Aquitânia. Luís nutria grande apreço pelos comentários bíblicos de Cláudio, baseados nas obras de Agostinho e de outros pais da igreja, e incentivou Cláudio a escrever. Quando Luís se tornou imperador em 813, Cláudio o seguiu até Aachen, na atual Alemanha (na fronteira com a Bélgica e a Holanda).

            Em 817, Luís o nomeou bispo de Turim, Itália. Foi lá que Cláudio entrou em contato com a idolatria italiana, que parecia não ter limites. Durante seu tempo, houve muita discussão sobre imagens religiosas, especialmente na igreja bizantina, onde alguns imperadores as baniram e as imperatrizes as restabeleceram. Cláudio não passou muito tempo discutindo. Ele destruiu as imagens com as próprias mãos.

            Essa reação iconoclasta provocou um coro de queixas iradas. “Todo mundo abriu a boca para me amaldiçoar e, se Deus não tivesse me ajudado, eles poderiam ter me engolido vivo” [1],  escrevera ele. Cláudio se comparou ao profeta Ezequiel, vivendo "entre escorpiões" [2].

            Cláudio, porém, estava acostumado a lutar, e não apenas com palavras. Como outros bispos de sua época, ele participou da proteção de sua província (que se estendia até a costa da Ligúria) contra os ataques de invasores muçulmanos. "Foram-se os dias da meditação", escreveu tristemente a seu amigo, abade Theodemir, que aguardava mais dos escritos de Cláudio. “Durante o inverno, eu ando de um lado para o outro pelas estradas imperiais. Durante toda a primavera, marcho com o exército para o litoral, onde atuo como sentinela contra sarracenos e mouros. Para redimir este tempo, levo meus papéis comigo. ”[3]

Acontece que Theodemir não foi completamente honesto em sua amizade com Cláudio. Sem o conhecimento do bispo, ele enviou os escritos de Cláudio para um concílio eclesiástico em Aix, na França, expressando dúvidas sobre a ortodoxia de Cláudio.

            Cláudio escreveu uma longa resposta a Theodemir, expressando sua decepção e explicando sua posição. “Longo” é um eufemismo (um de seus inimigos disse que era mais extenso que o Livro dos 150 Salmos, somando ainda outros 50). Hoje, temos apenas alguns trechos, citados por seus oponentes, que são mais que suficientes para entender seu ponto de vista.

Um problema da adoração de ídolos é que afasta as pessoas da realidade. "O mandamento de Deus é carregar a cruz, não cultuá-la" [4], explicou. Além disso, “se eles querem cultuar cada pedaço de madeira em forma de cruz porque Jesus foi pendurado na cruz, devem cultuar muitos outros objetos que têm a ver com a encarnação Dele”. Tomando essa reductio ad absurdum em maior escala, ele adicionou uma longa lista de possíveis ídolos: manjedouras, virgens, panos, barcos (Jesus ensinou em barcos e dormiu em um barco), burros (Jesus montou em um), pedras (Paulo disse: “A rocha era Cristo” [5]), espinhos, leões (Jesus é chamado “o Leão da tribo de Judá” [6]) e cordeiros (porque João Batista disse sobre Cristo: “Eis o Cordeiro de Deus. ” [7]). “Mas esses seguidores de ensinamentos perversos querem comer cordeiros vivos e cultuar os pintados nas paredes [8], diz Cláudio.

No mesmo trabalho, ele respondeu algumas das acusações de Theodemir. Era verdade que ele se opunha às orações aos santos, que ele considerava idolatria. Além disso, os que partiram ainda não estavam em seu estado final de glória e não podiam ouvir as orações das pessoas. Nisso, ele não era completamente inovador. Agostinho de Hipona havia expressado a mesma dúvida antes. A diferença é que Agostinho finalmente concluiu que os santos podem ouvir orações humanas.

            Ele se opôs às relíquias, não apenas porque as pessoas as transformaram em ídolos, mas porque se distraíram de adorar a Deus que está no céu. Por esse motivo, ele também insistiu que os crentes orassem erguendo os olhos para cima (como era costume nos tempos bíblicos e na igreja primitiva), em vez de se curvar ou prostrar-se no chão.

Quanto às peregrinações a Roma, ele era bastante neutro: “não as aprovo nem desaprovo.” [9]. Mas ele fez uma indagação ao abade: se ir a Roma pode determinar a salvação eterna de alguém, por que Ele causou a perdição de tantas almas, mantendo-as em um mosteiro? Ele não deveria ter enviado todos eles para Roma?

            Uma viagem a Roma não era em si pecaminosa, explicou Cláudio. Surgiu um problema quando as pessoas acreditavam que isso poderia remeter pecados, ganhar mérito ou garantir a intercessão de Pedro. Nada disso era verdade.

            No final, Cláudio não foi condenado e morreu pacificamente em seu posto. Provavelmente, isso se devia ao fato dessas doutrinas ainda estarem sendo discutidas. No entanto, ele foi o iconoclasta ocidental mais feroz. Enquanto outros clérigos e teólogos brincavam com distinções sutis como adoração e veneração ou diferentes graus de culto, ele condenava qualquer coisa que não fosse o culto puro do Deus único. E contraímos uma dívida de gratidão a seus inimigos por preservar boa parte de sua apologia, pois eles citaram suas declarações para confutá-las.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


[1] “Idcirco aperuetunt ombes ora sua ad blashemandum me et nis Dominus adjuvasset me, forsitan vivum deglutissent me.” Claudius of Turin, Apologeticum, apud Emilio Comba, Claudio di Torino, Claudiana, Florence, 1895, p. 64, tradução própria.

[2] “In medio scorpionum,” Claudius, Prefácio do Comentário ao Livro dos Reis, apud Comba, p. 26.

[3] “Brumale tempus vias palatinas eundo et redeundo. Post medium veri, pergo at excubias maritimas, cum timore excubando adversus Agarenos et Mauros.”. Claudius,  Prefácio aos Coríntios, Augusta Taurinorum, apud Comba, p. 25.

[4] "Deus jussit crucem portare, non adorare". apud Comba, p. 85.

[5] 1 Co 10:4

[6] Ap 5:5

[7] Jo 1:29

[8] apud Comba, p. 84.

[9] "Ego enim iter illudnec adprobo nec improbo."



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