Paulino de Nola (r. 410-431) e a Introdução de Imagens em igrejas

 

Ícone ortodoxo representando São Paulino, bispo de Nola, da froma como um bispo pós-niceno provavelmente teria se vestido.
 

Romanistas e melquitas ("ortodoxos") têm de se conformar com o fato de que nenhum Pai da Igreja defendeu o uso de ícones em todo o período ante-niceno. Tão incontestável é este parecer que nem mesmo os florilégios iconódulas do século oitavo foram capazes de fornecer referências pré-nicenas em favor de ícones; exceção pontual, diga-se de passagem, viria do "testemunho" de São Dionísio Areopagita, que apesar de atribuir a prática ao período apostólico, é reconhecidamente falso e apócrifo.

Um leitor mais leigo poderia estranhar a admissão do padre Steve Bigham quanto ao estado da questão:

"Existe uma teoria, então, constatando que os antigos cristãos não tinham imagens e eram hostis a elas porque sua religião proibia arte figurativa. Esta teoria, que podemos chamar de teoria da hostilidade, é aceita como um fato estabelecido por quase todos os pesquisadores do campo. Nós não conseguiríamos listar todos os livros que adotam este ponto de vista, mas nós podemos mencionar alguns que mostram o quanto esta ideia domina o panorama intelectual: no geral, escritores cristãos até meados do século quarto ou repudiam o uso de arte na Igreja, ou a ignoram completamente de tal maneira que se poderia supor que ela não existia." [1]

Conforme a História da Igreja passou a ser objeto de estudo acadêmico e sujeito à crítica dos pares, os estudiosos iconódulas se encontraram em um dilema: persistir na já ignorada apologética negacionista ou procurar dialogar o dogma com aquilo que a academia concedia ao Protestantismo. O padre Bigham, mesmo publicando por uma editora não-acadêmica como a Orthodox Research Institute, precisa reconhecer esses fatos para construir credibilidade, embora o faça à contra-gosto e mitigue isto o melhor que pode.

A constatação acadêmica é tão clara que sequer precisamos nos apoiar no referencial apologético protestante. Ernst Kitzinger, contado entre as maiores autoridades da área, é decisivo:

"Quando, no início do século IV, a arte cristã tornou-se objeto de comentários mais articulados, estes eram a princípio ou de alguma forma restritivos. Não foi antes da segunda metade do quarto século que algum escritor começou a falar da arte pictórica cristã em termos positivos. Ainda assim, era uma questão com referências fugazes ao invés de uma defesa sistemática [...] Estas justificativas das imagens cristãs como foram tentadas durante a segunda metade do século IV baseava-se exclusivamente em sua utilidade como ferramentas educacionais, particularmente para os analfabetos." [2]

Mesmo os fanáticos desqualificando o consenso acadêmico com toda sorte de falácias genéticas (e.g. Kitzinger ser judeu supostamente o impediria de falar sobre doutrinas sensíveis à Igreja Romana), eles têm que se conformar com a realidade, a acadêmia só constata os mesmos fatos já apontados por protestantes há 500 anos: o consenso patrístico até meados do século quarto é aniconista. Longe de uma mera "teoria da hostilidade", as raízes da doutrina cristã sempre estiveram no aniconismo.

Dito isto, é fundamental conhecermos os meandros do processo de surgimento do iconismo. O culto às imagens não poderá, ainda, ser rastreado nos primeiros registros iconistas, dados que estes, por excelência, também são anticonódulas. Todavia, nesta nova fase da História Eclesiástica, a coexistência do aniconismo com o iconismo será responsável, com a popularização deste no longo prazo, pela corrupção iconódula.

Paulino de Nola, reconhecido como santo nas igrejas iconódulas, foi contemporâneo de grandes nomes como Agostinho, Jerônimo e Epifânio, todos estes três com visões aniconistas. Paulino, contudo, fez e defendeu algum uso de imagens. No decorrer deste artigo, porém, será revelado que suas motivações e testemunho tornam Paulino uma péssima referência de iconofilia.


A NOVIDADE NO SANTUÁRIO DE FÉLIX DE NOLA


Este escrito de Paulino, datado do século V [3], diz a respeito de um episódio onde o antigo santuário de Félix passou a ser decorado com representações pessoais de cenas bíblicas.

O fato de Paulino se sentir na obrigação de tentar justificar porquê introduziu estas imagens revela muito da visão predominante na época. "Accipite, et paucis tentabo exponere causas" (Carmina Natalicia. XXVII, 545). Como veremos a seguir, a própria idéia de imagens na Igreja era tão naturalmente absurda que obrigou o bispo de Nola a produzir uma defesa antecipada. A sua justificativa é a seguinte:

"Talvez possa ser questionado, por que razão, contrário ao uso comum, eu pintei esta sagrada habitação com representações de pessoas? [....] Aqui encontra-se uma multidão de rústicos de fé imperfeita, que não podem ler, os quais antes de se converterem a Cristo eram acostumados aos ritos profanos e obedeciam os próprios sentidos como deuses. Eu, portanto, pensei que seria conveniente animar com pinturas toda a habitação do santo. Pinturas então traçadas com cores poderão, talvez, inspirar estas mentes rudes com admiração. Inscrições são colocadas acima das pinturas para que elas possam explicar o que foi descrito com as mãos." [4] (Paulinus Nolanus. Carmina natalicia. PL XXVII, 541-550, 580-585.)

Pode-se concluir claramente que a introdução de imagens no santuário de Felix por Paulino:

I) Era contrária ao uso comum. Isto é, o bispo pressupõe ser de conhecimento ao leitor da época que os cristãos não faziam e não tinham por tradição adornar edifícios religiosos com ícones, ou até mesmo fazer qualquer uso religioso de imagens pessoais no início do século V.

II) Era digno de uma tentativa de justificação. Não haveria necessidade de se defender algo que era tido como normal para a Igreja. Do contrário, porque estaria Paulino se justificando sobre algo que todos na Igreja já viam como normal?
 
 III) O motivo para quebrar com o uso comum da Igreja consistia num problema situacional e extremamente específico: analfabetos, de histórico pagão ainda mal resolvido, que "obedeciam aos próprios sentidos como deuses". Além de impossibilitar uma ampla aplicação do iconismo,
 
Isto em si ainda nem diz respeito sobre a validade da decisão de Paulino, que sem dúvidas deve ser condenada como abusiva. 

IV) Admitindo ser contrário à Tradição da Igreja e de ter uma justificativa situacional, os resultados desejados não eram certos ou confiáveis; talvez, diz Paulino, as imagens possam gerar resultados positivos. Mas isto também significa que elas talvez não gerem. A proposta do bispo de Nola é uma aposta, dizendo respeito ao domínio das possibilidades, não das certezas (e nisto não seria ela vítima da Guilhotina de Hume?). Ao derivar uma decisão com fortes consequências teológicas em contingentes (ie. aquilo que é incerto, possível, ou duvidoso), Paulino agride o fundamento da ortodoxia cristã. A Doutrina Cristã Verdadeira não se fundamenta em especulações, mas em fatos e em certezas transcendentais ao próprio homem.

V) Paulino estabelece o uso didático de imagens do qual o papa Gregório Magno se alinharia, em 600 d.C. Isto significa uma condenação à iconodulia e a todas as formas modernas de iconismo.

VI) Por negar o culto às imagens, Paulino prova que a mesma não cumpre a Regra de São Vicente. Por consequência, ele também refuta o edifício completo do culto às imagens.

VII) Outra consequência da negação da iconodulia é o atestado do erro da sua própria canonização: como canonizações são infalíveis, o caso do herético Paulino refutaria a Infalibilidade da Igreja como é defendida nas igrejas romana e melquitas.


AS IMAGENS DO EDIFÍCIO E INDICATIVOS DE UMA INOVAÇÃO MODERADA


As imagens do santuário em Nola, longe um iconismo mais ousado, tinham até alguns escrúpulos: "as pinturas na parede descrevem cenas bíblicas do Antigo Testamento, exibindo os atos de Moisés e Josué, a história da passagem de Israel pelo Jordão e o retrato de Rute seguindo fielmente sua sogra." [5] 

Este fato não pode ser transmitido de forma indiferente: mesmo inovando, as pinturas de Paulino guardam resquícios das reservas artísticas do passado. Não existem imagens de Cristo, muito menos das pessoas imateriais da Trindade. Na verdade, nem os apóstolos, nem os santos ou qualquer outra figura neotestamentária figura nas pinturas do edifício, um fato extremamente pertinente para uma religião que, indiscutivelmente, nutria uma grande ênfase no Novo Testamento e no Período da Graça, por vezes beirando ao ódio daquilo que lembrava o judaísmo; algo que Paulino, certamente, tinha plena ciência. 

E se parecer irrelevante para um leigo que não existam imagens de Cristo, o bispo ortodoxo Kallistos Ware, certamente a pessoa menos simpática ao aniconismo, esclarece o contexto: 

"Com a conversão de Constantino e o desaparecimento progressivo do paganismo, a Igreja cresceu menos hesitante no uso de sua arte. Por volta de 400 d.C já era uma prática aceita representar o Nosso Senhor não apenas através de símbolos, mas diretamente." [6]

Antes das primeiras representações de Deus-Pai surgirem, em torno dos século XII e XIV, a representação do Deus-Filho era a última das reservas da arte cristã e daquilo que poderiamos chamar de primeiro iconismo. O fato do santuário reformado por Paulino não se aventurar nisso, numa época onde já existiam imagens de Cristo, parece indicar uma sensibilidade ocidental ainda receosa,

Considerando que Gregório de Nyssa, na década de 380, relata a existência de uma imagem de Cristo num templo na Ásia Menor [7], não seria a atitude de Paulino, um bispo, um indicativo de que autoridades eclesiásticas no Ocidente, ou pelo menos na Itália, eram mais rígidas e conservadoras do que a iniciativa popular no Oriente? 


CONSIDERAÇÕES SOBRE A INICIATIVA DE PAULINO À LUZ DA HISTORIOGRAFIA E DAS SAGRADAS ESCRITURAS


O alemão Johann Karl Ludwig Gieseler, especialista em História da Igreja, constata:

"A aversão às imagens entre cristãos cessou no século IV. Passou-se a permitir não apenas as semelhanças dos imperadores, mas também a de outros homens de distinção. Por outro lado, ainda se considerava prática pagã representar aquilo que era objeto de culto por imagens. A princípio, representações alegóricas das doutrinas sagradas, pinturas das histórias bíblicas, ou da vida dos mártires foram permitidas em igrejas: destas, as primeiras ocorrências no oriente são mencionadas por Gregório de Nissa; no ocidente, por Paulino, bispo de Nola (409-431 A.D.). Estas pinturas não foram feitas para serem cultuadas, mas meramente para instrução e estímulo. Todavia, as representações de indivíduos só foram capazes de desviar as mentes dos iletrados, assim como para o seu culto."  [8]

Determinados iconódulas poderiam levantar objeções por Gieseler ser um autor protestante, logo não-confiável. Contudo, Gieseler, que é mais especificamente um luterano, acumulou um número substancial de credenciais para sua exposição ser sumariamente descartada por iconódulas negacionistas: entre elas, correitor do ginásio de Midden (1817), diretor do ginásio de Cleves (1818), reitor da Universidade de Bonn (1830) e Consistorialrath da Universidade de Göttingen (1837). Por conta de suas significativas contribuições ao ramo da História Eclesiástica, foi cavaleiro da Ordem Real dos Guelfos (1837) do Reino de Hanover e membro da Acadêmia de Ciências de Göttingen (1844). Apesar disto, a nossa argumentação está longe de depender de historiadores protestantes, mesmo quando se tratam daqueles de tradição iconófila.

A doutora Caecilia Davis-Weyer, mencionada no artigo sobre Gregório Magno, novamente nos esclarece:

"Em um poema dos primeiros anos do século V, Paulino descreve um ciclo de cenas do Antigo Testamento a Nicetas, um amigo visitante. 
[...]
Paulino parece estar bem ciente de uma duradoura hostilidade à imagens dentro da igreja. Ele toma grande cuidado para assinalar que elas haviam sido introduzidas meramente para instruir e edificar as mentes simplórias. No entanto, as interpretações alegóricas das quais Paulino associa as cenas de Rute e Orfa denunciam seu próprio comprometimento e interesse na iconografia, fazendo esta desculpa soar um tanto dissimulada." [9]

Além da acadêmica confirmar o que foi dito por Gieseler, ela ainda destaca um outro aspecto de Paulino: sua hipocrisia. Como também notado no artigo de Myers sobre o pensamento do bispo nolano:

"Conforme bispos cristãos tanto do ocidente quanto do oriente se agarravam a esta persuasiva objeção contra imagens, uma grande defesa para a existência e uso de iconografia na igreja e em outros edifícios sagrados é manifesta na necessidade expressa de instruir o povo ordinário e iletrado. [...] Um poema de Paulino de Nola no início do século quinto apresenta não somente uma descrição elaborada do povo ordinário que aparece na sua igreja no dia de festas santas, mas uma observação factual de como, assim como livros, as imagens servem para instruir aqueles cujo entendimento é limitado. [...] Mas, desconsiderado o texto, o qual deveria ser notado como um único texto que não oferece uma defesa em campos hipotéticos, a altamente sugestiva significância desta notória defesa de imagens será simplesmente vista como uma ilusão: uma farsa sacerdotal introduzida para salva-guardar o que é, na realidade, simples auto-interesse na estética." [10]

Assim como muitos iconófilos mascaram seus anseios estéticos por justificativas utilitárias ou piedosas, Paulino se mostra, por debaixo dos pano, um cripto-iconófilo num ambiente ainda muito conservador para suas idéias. Isto também ajuda a explicar como, de pequenas inovações ou desejo estético, a Igreja foi caminhando de pouco a pouco para o abandono de seu ethos litúrgico. 

Levando em consideração que Paulino escreve buscando prestar explicações à Nicetas, bispo de Remesiana, isto também nos permite fazer deduções pertinentes: não só Paulino, mas o próprio bispo de Remesiana (atual Sérvia) estariam introduzidos num ambiente teológico-litúrgico de aniconismo. Isto se mostra óbvio na medida que não haveria razão para este estranhamento caso as igrejas que o referido bispo conhecesse tivessem imagens.

Derivando as consequências disto, a Península Balcânica (incluindo territórios da atual Grécia, Albânia, Sérvia etc) e muitas partes da própria Itália naquela época seriam, por excelência, aniconistas; isto se pode derivar pelo fato de que a presença do bispo balcânico em Nola também indica que o mesmo detinha algum tipo de conhecimento sobre outras igrejas na península Itálica, especialmente da própria Roma. 

E se São Nicetas não professava o iconodulismo, como ordenam os concílios iconódulas, sua canonização também foi errônea. Se a canonização foi falha, então não existe Infalibilidade da Igreja como afirma o dogma romanista e melquita.

A doutora Caecilia Davis-Weyer apresenta sua tradução da carta, mostrando outras passagens que mostram como Paulino se sentiu constrangido com o que Nicetas, bispo de Remesiana, poderia pensar sobre estas imagens:

"E agora, observe que eles estendem seu júbilo a noite inteira, acordados e em grandes números, afastando o sono para longe com alegria e a escuridão com tochas. Se ao menos eles desfrutassem deste júbilo com intenções saudáveis, ao invés de entrar nas casas sagradas com cálices! Embora uma congregação sóbria nos permita ouvir um culto preferível, fazendo os hinos sagrados ecoarem com vozes imaculadas e apresentando uma canção de louvor ao Senhor como uma oferenda sem estarem bêbados, eu acho que essas alegrias devem ser perdoadas, se eles as compensassem com pequenas refeições, porque o erro roubou as mentes rudes; e a simplicidade, inconsciente de tanta culpa, cai em piedade, na falsa crença de que os santos se alegram quando vinho fedorento é derramado sobre seus túmulos... 

Portanto, pareceu-nos um trabalho alegremente útil então embelezar as casas de Félix por toda parte com pinturas sagradas para ver se o espírito dos camponeses não seria surpreendido por esse espetáculo e sofreria a influência dos desenhos coloridos, que são explicados pelas inscrições acima deles, para que sua descrição possa esclarecer o que a mão exibiu. Talvez, quando todos mostrarem e relerem uns para os outros o que foi pintado, seus pensamentos se voltarão mais lentamente para comer, enquanto se saciam com um jejum agradável aos olhos. E talvez assim um hábito melhor, em sua estupefação, se enraíze neles, devido à pintura que desviou artisticamente seus pensamentos da fome. Quando alguém lê as santas histórias de obras castas, a virtude induzida por exemplos piedosos rouba-a; quem tem sede é saciado com sobriedade, o resultado é o esquecimento do desejo por vinho excessivo. E enquanto passam o dia olhando, na maioria das vezes as canecas são preenchidas com menos frequência, porque agora o tempo foi gasto com todas essas coisas maravilhosas, e menos com uma refeição" [11].

Myers faz importantes notas sobre a relação de Paulino com estes camponeses:

"Confrontado pela questão [da introdução de imagens], Paulino se devota em uma extensa defesa, que gira em torno do fato de que a tumba de São Félix atrai multidões massivas, uma realidade que causa imenso deleite em Paulino.
[...] 
Mas, para o desânimo de Paulino, a celebração vêm, como se poderia esperar, com volumosas jarras de bebida. Num entusiasmo dionísico, os camponeses bebem, bebem e bebem. 
[...]
Mesmo que seja óbvio que Paulino está desconcertado por uma atividade que sugere um culto bacanal não penas nas honras prestadas ao morto, mas até na oferenda sacrificial do culto ao morto [na forma de vinho], algo que  Paulino surpreendentemente não censura no comportamento dos camponeses. [...] Em outras palavras, Paulino pensa que perdão deve ser concedido [...]. E quem é o culpado por isto? Ninguém menos que o próprio Diabo. 
[...]
A representação de Paulino dos camponeses fazendeiros das proxímidades de Nola certamente mostram traços de condescendência [...]. Talvez fosse uma tática astuta, mas se foi puramente uma tática, ela permanece como uma gritante e inconsciente cravo na face da liderança cristã frente aos ineducados. A questão então permanece: a defesa de Paulino era um apelo autêntico aos oficiais da igreja para incorporar o povo ordinário no ensino cristão ou meramente uma desculpa não-ingênua para mascarar seus causas interiores, isto é, seu interesse próprio na estética?" [12]

O que mais se precisa dizer? Paulino justifica o abuso das imagens na igreja com o sacrilégio "inocente" dos homens rudes. Não menos rudes eram os hebreus da Antiga Aliança, desde Abraão, indivíduos da Idade do Bronze. Mesmo assim era cobrada a devida reverência com as coisas do senhor: 

Guarda o teu pé, quando entrares na casa de Deus; porque chegar-se para ouvir é melhor do que oferecer sacrifícios de tolos, pois não sabem que fazem mal.

Eclesiastes 5:1
“Guarda o teu pé quando entrares na casa do teu Deus!” (Eclesiastes 5:1)
Guarda o teu pé, quando entrares na casa de Deus; porque chegar-se para ouvir é melhor do que oferecer sacrifícios de tolos, pois não sabem que fazem mal.

Eclesiastes 5:1

“O SENHOR, porém, está no seu santo templo; cale-se diante dele toda a terra” (Habacuque 2:2)

 “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Romanos 12:1)

Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade(João 4:24)

Paulino é culpado de negligência, pois não levou seu rebanho ao conhecimento de Deus, à disciplina e à devida reverência no culto. Hipócrita ou não, Paulino não agiu com a ortopraxia de um ministro da igreja: "diferente de outras atividades missionárias, que 'frequentemente assumiam uma postura confrontacional ou combativa, os esforços de Paulino ... parecem mais flexíveis'." [13]. A defesa de meios sensoriais e recreativos para satisfazer homens igualmente sensoriais e recreativos cai no desserviço do mal pregador que Paul Washer, pastor batista, alertou: "Os pastores carnais que usam meios carnais para trazer homens carnais para suas igrejas, continuarão a usar meios carnais para manter estes homens carnais em sua igreja carnal".


A CARTA DE PAULINO A SUPLÍCIO SEVERO (403) E O ÍCONE DO ÍCONE


Rigorosamente, a teologia iconódula não considera símbolos e figuras metafóricas como ícones. O pavão, o peixe e a âncora não são eles mesmos "ícones", que constituem representações de pessoas sacras como Cristo e os santos. 

A distinção dos ícones sagrados para representações de teor simbólico é importante na teologia iconódula, principalmente à Oriente. Um símbolo, animal ou metáfora que representa algo diferente da figura em si é o que permite, inclusive, a representação das pessoas imateriais da Trindade (Deus Pai e o Espírito Santo), como na conhecida forma de pomba, que costuma figurar como ícone do ícone que simboliza o Espírito Santo. Para ortodoxos russos, que seguem estritamente a proibição de representar as pessoas imateriais da Trindade, essa distinção é vital para sua iconografia, uma vez que foge das sentenças de idolatria e sacrilégio estabelecidas por João Damasceno e Nicéia II. Todavia, todos os demais iconódulas são culpados do erro condenado no século oitavo, tornando-se sacrílegos e idólatras pelos seus próprios documentos históricos. 

Paulino parecia estar mais à vontade para dialogar sobre o uso destes símbolos em correspondências trocadas com Suplício Severo, conforme notado pela doutora Davis-Weyer:

 "'A Trindade' e 'O Julgamento Final' eram descritos com emblemas e símbolos derivados da metáfora escriturística e das imagens imperiais. Alguns destes elementos, como o cordeiro, a pomba, a palmeira, o tecido púrpura e a coroa aparecem em muitos monumentos cristãos do quarto século e do início do quinto, e não foram inventados por Paulino" [14].

Neste sentido, para aquele período de início do século V, Paulino achava aceitável o uso de figuras simbólicas em igrejas, mas era forçado a admitir que representações pessoais, tais como ícones, eram contrários à Tradição da Igreja ainda por volta de 400 d.C. E isto, necessariamente, é uma distinção reconhecida pela teologia iconódula.  
Mosaico de um passáro, em uma igreja melquita do Levante. A imagem profana foi cuidadosamente desfigurada por cristãos melquitas, na primeira metade do século VIII, sendo posta uma cruz, feita com as peças retiradas da mesma.

Se iconódulas consideravam ousadamente sacrílego destruir ícones sagrados, eles tratavam com indiferença, quando não apoio, a destruição do "ícone do ícone". Isto se mostra evidente na própria campanha iconoclasta contra essas representações, também chamadas de "imagens profanas" [15], patrocinada pelas igrejas calcedônias em território muçulmano [15]. Esta iconoclastia, que foi contemporânea da sua análoga bizantina, não recebeu mais do que a indiferença dos iconódulas bizantinos. Na verdade, mesmo entre iconódulas no Califado Omíada não temos sequer uma linha de condenação a esta prática; João Damasceno, como ex-funcionário público na corte do próprio Califa, é a referência mais plena desta indiferença. 

A defesa de ícones não implica, em qualquer sentido, a defesa de imagens profanas. E paralelamente, a defesa de imagens profanas não implica na defesa de imagens pessoais, muito menos de ícones sagrados. Como diz Juan Signes de Codoñer, catedrático da Universidade de Valladolid e presidente da Associação Espanhola de Estudos Bizantinos: "pinturas de chão e ícones sagrados não são fenômenos conceituados como equivalentes ou como contraditórios" [16]. Desta forma, esclarecemos em Paulino uma consistência histórica do debate teológico: imagens profanas não indicam iconismo cristão.  


O USO DA ICONOFILIA DE PAULINO POR APOLOGISTAS ROMANISTAS MODERNOS


Não é difícil perceber as dificuldades que qualquer iconódula teria ao utilizar o Bispo de Nola no seu arcabouço de referências patrísticas. Porém, o fato deste documento ser autêntico e os iconódulas sofrerem de uma grave escassez de referências que eles mesmos não falsificaram leva muitos a usarem Paulino a seu favor. A referência textual da novidade das imagens, que configura um problema gravíssimo para a causa iconódula, é maquiado por diferentes apologistas papistas de maneira idêntica.

O artigo de iconodulia da Apologistas Católicos, que precisamos corrigir de seus muitos erros ortográficos, afirma o seguinte sobre o bispo nolano: 

"Paulino de Nola ou Poncio Ancio Meropio foi ordenado padre em 394 e, em 409, bispo de Nola, na província de Nápoles. São Paulino pagou por mosaicos representando cenas bíblicas e santos para as igrejas de sua cidade, e, em seguida, escreveu um poema descrevendo-os (PL, LXI, 884)." [17]

Isto é tudo o que eles têm para falar de Paulino. Enquanto praticamente todos os outros Pais da Igreja no mesmo artigo possuem as próprias passagens citadas, o apologista Rafael Rodrigues simplesmente dispensa a de Paulino, preferindo dar uma referência contraída que só patrologistas poderiam entender (ie. Patrologia Latina, de Jacques Paul Migne, volume 61, seção 884). Deste grupo seleto, somente aqueles realmente interessados, com o volume específico em mãos e com o conhecimento necessário do latim poderiam confirmar a omissão gravíssima do conteúdo. A decisão de dificultar ao máximo o acesso da fonte é intencional, uma vez que do contrário Rodrigues jamais poderia concluir seu artigo desta forma:

"O ensino cristão das imagens e relíquias sagradas está presente desde os primeiros escritos cristãos que se tem conhecimento, todos eles confirmam unanimemente como a teologia católica não inova, apenas repete o que é da fé através dos séculos!" [17]

Novamente, corrigimos erros gramaticais do enxerto citado; que são, na melhor das hipóteses, o menor dos erros do artigo. Se a passagem de Paulino fosse de fato trazida, ela desmontaria toda a proposta do artigo e o tornaria virtualmente inútil: mostraria evidência fundamental de inovação. Seria impossível, então, falar que o ensino antigo confirma "unanimemente como a teologia católica não inova" e que ela decisivamente não repete a mesma doutrina "através dos séculos". O texto papista sucumbiria no exato momento em que se comprometesse com a honestidade. Neste dilema, a prioridade se faz clara: não é a honestidade, é a doutrina papista.

Quando o maior site de apologética romana brasileira opta por manipular o conteúdo de um Pai da Igreja e por dificultar o acesso da sua fonte, temos uma disseminação massiva de desinformação por intenções maliciosas. Nosso artigo é o primeiro em língua portuguesa a contestar essa narrativa de Paulino. Mas e quanto ao prejuízo intelectual já causado a todos os leitores enganados, por todos estes anos, por essa estratégia desonesta?

Mas Rodrigues não é o único em manipular a passagem de Paulino, a Enciclopédia Católica (1910) foi provavelmente a sua inspiração:

"A ideia de que a Igreja nos seus primeiros séculos eram de qualquer forma preconceituosa contra imagens e estátuas é a mais impossível das ficções. Após Constantino (306-37) é claro que houve um enorme desenvolvimento de todo o gênero. [...] Deste tempo até a perseguição iconoclasta, as santas imagens estavam por toda a parte do Mundo Cristão. [...] São Paulino de Nola († 431) pagou por mosaicos representando cenas bíblicas e santos nas igrejas da sua cidade e compôs um poema as descrevendo (P.L, LXI, 884)." [18]

Um dos maiores tratados do Catolicismo Romano, aprovado pela revisão e censura do Arcebispo de Nova Iorque, opta por omitir o real tom da passagem paulina e a justapõe, convenientemente, num texto que nega aquilo que o próprio Paulino admite. 

Mas se engana quem pensa que esta maquiagem bibliográfica é necessariamente moderna. Na verdade, ela já foi usada pela apologética iconódula muito antes, ainda na Idade Média. 


O USO DA ICONOFILIA DE PAULINO POR ICONÓDULAS DO OCIDENTE MEDIEVAL


No início do século IX, a diocese italiana de Turim receberia um estrangeiro como seu novo bispo. Intelectual reconhecido, versado em Patrística e nas Sagradas Escrituras, o recém-empossado Cláudio logo se escandalizou com uma prática bem difundida na Itália de seu tempo: o culto às imagens. Virtualmente inexistente na Espanha, na Gália e na Alemanha, a idolatria vista por Cláudio foi suprimida através da iconoclastia. Naturalmente, isto atraiu muitos inimigos. Destes, destaca-se o monge  ou bispo  Dungal da Irlanda, que escreveu um tratado em defesa da veneração de imagens. Diversos padres papistas irlandeses nos últimos séculos exaltaram o esforço de Dungal, como o bispo P. J. Carew:

"Dungal então estabelece a antiguidade do uso, que permitia imagens serem postas em igrejas, citando várias passagens dos escritos de São Paulino, o ilustre bispo de Nola" [19]

O bispo John Healy, outro papista irlandês:

"Ele primeiro estabelece muito claramente os pontos em questão entre os partidos rivais, então procede para refutar Cláudio e provar a doutrina católica, inicialmente notando que era uma insolência espantosa que qualquer homem pudesse ousar 'censurar e blasfemar aquela doutrina e prática que por 820 anos ou mais foi seguida pelos Benditos Pais, pelos príncipes mais religiosos, e por todas as famílias cristãs até o presente momento'.

Após provar que estas práticas não eram apenas permitidas, mas sancionadas pelo próprio Deus no Pentateuco, ele prossegue para estabelecer esta tradição da Igreja Católica, citando a maioria dos Pais Latinos e Gregos, os poemas de Paulino, Prudêncio e Fortunato, os Atos dos Mártires e a liturgia da Igreja. Ele cita, mais ainda, o Apocalipse, os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos, em grande extensão, para provar a mesma doutrina, alegando que ela foi a crença e prática universal no Oriente e no Ocidente desde os dias dos apóstolos até o seu próprio tempo. Os gregos erraram recentemente, mas seus erros foram retratados e condenados" [20].

O historiador Thomas F. X. Noble nota sobre o Respostas de monge irlandês:

"Um traço distintivo do livro de Dungal são as citações extensivas dos poetas cristãos Paulino de Nola e (Venâncio) Fortunato; essas citações constituem mais de um quarto de todo o livro" [21].

Que Paulino de Nola defendeu a veneração de imagens ou que ela foi prática apostólica initerrupta até o século IX, com exceção dos iconoclastas gregos, são alegações tão fantasiosas que merecem uma paráfrase da Enciclopédia Católica: "a mais impossível das ficcções".

Irônico ou não, nem os legados papais que participaram do Segundo Concílio de Nicéia II (787) fizeram uso de Paulino como referência iconófila. É possível deduzir possíveis explicações para a ausência de sua menção no sínodo iconódula: falta de estômago para supressões textuais tão descaradas; ou pura e simplesmente falta de estudo; talvez uma síntese de ambas, como é o caso de Dungal. Neste sentido, nunca saberemos a real razão, embora seja claro para nós que tanto papistas modernos quanto medievais seguem uma tradição bem estabelecida de manipulação documental.


O USO DA ICONOFILIA DE PAULINO POR PAPISTAS APÓS A REFORMA PROTESTANTE


Nenhuma desonestidade é realment











CONCLUSÃO


Paulino de Nola é um exemplar perfeito do processo de introdução de imagens, pois ele está consciente de sua inovação e de seu desvio da tradição. Já com Gregório Magno, quase duzentos anos depois, o uso de imagens para uso exclusivo da instrução dos ignorantes agora já é pelo menos dentro do conhecimento de Gregório I a regra, e não a exceção: seu uso já é a tradição, não o desvio dela. Com Gregório II, no início do século VIII, agora a tradição, de acordo com o mesmo, não era o meramente didático, mas o culto às imagens; e também de acordo com o mesmo, tal prática iconódula era o costume ininterrupto da Igreja desde o primeiro século, embora saibamos que isso está muito longe de ser verdade. 

Paulino, Gregório I e Gregório II são fases bem definidas na anatomia de uma corrupção doutrinária.


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
_________________________________________

REFERÊNCIAS:

[1] BIGHAM, Fr. Steven. Early Christian Attitudes toward Images. Orthodox Research Institute, 2004. p. 1-2.

[2] KITZINGER, Ernst. The Cult of Images in the Age before Iconoclasm. Dumbarton Oaks Papers, Vol. 8, (1954). p. 87.

[3] RANDALL, Randy C. The Reformation and the Visual Arts. 2007. p. 18.

[4] WITHROW, William H. The Catacombs of Rome and Their Testimony to Primitive Christianity. Hodder And Stoughton, 2015. Livro 2, Cap. I.

[5] MYERS, James. Truth, Images, and Nourishing the Ordinary: Representations of and Re-presentations for Ordinary in the Thought of Paulinus of Nola. NC Colloquium in Medieval and Early Modern Studies. p. 4.

[6] WARE, Kallistos. The Veneration of Icons: Historical Development, ed. e org. CUNLIFFE-JONES, H. A History of Christian Doctrine. Bloomsbury Publishing, 2006. Cap. 3, p. 191.

[7] Gregory of Nyssa, In Praise of Blessed Theodore, the Great Martyr, ed. McCAMBLY, Casimir. p.1.

[8] GIESELER, Johann K. L. A Text-Book of Church History, vol. I (1-726 A.D.). Nova York: Harper & Brothers, 1857. p. 426-427.

[9] DAVIS-WEYER, Caecilia. Early Medieval Art, 300-1150: Sources and Documents. University of Toronto Press, 1986. p. 17-18.

[10] MYERS. ibid. p. 2-3.

[11] DAVIS-WEYER. ibid. p. 18-19.

[12] MYERS. ibid. p. 5-8.

[13] ibid. p. 8-9.

[14]  DAVIS-WEYER. ibid. p. 20.

[15] CODOÑER, Juan S. Melkites and Icon Worship during Iconoclastic Period. Washington D.C.: Dumbarton Oaks, numbers sixty-seven, 2013. p. 140.

[16] ibid. p. 143.

[17] RODRIGUES, Rafael. Pais da Igreja e as imagens e relíquias Sagradas. Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/controversias/623-pais-da-igreja-e-as-imagens-e-reliquias-sagradas >. Acesso em 5 de agosto de 2020. 

[18] FORTESCUE, Adrian. Veneration of Images. The Catholic Encyclopedia. Vol. 7. Nova Iorque: Robert Appleton Company, 1910. Disponível em: <http://www.newadvent.org/cathen/07664a.htm>. Acesso em 5 de agosto de 2020.

[19] CAREW, P. J. An Ecclesiastical History of Ireland, from the Introduction of Christianity Into that Country, to the Commencement of the Thirteenth Century. Dublin: John Coyne, 1835. p. 334. 

[20] HEALY, John. Insula Sanctorum Et Doctorum Or Ireland's Ancient Schools And Scholars. Londres: Read Books Ltd, 2016.

[21] NOBLE, Thomas F. X. Images, Iconoclasm and the Carolingians. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2009. Cap. 7, p. 306.

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