Paulino de Nola (r. 410-431) e a Introdução de Imagens em igrejas
Romanistas e melquitas ("ortodoxos") têm de se conformar com o fato de que nenhum Pai da Igreja defendeu o uso de ícones em todo o período ante-niceno. Tão incontestável é este parecer que nem mesmo os florilégios iconódulas do século oitavo foram capazes de fornecer referências pré-nicenas em favor de ícones; exceção pontual, diga-se de passagem, viria do "testemunho" de São Dionísio Areopagita, que apesar de atribuir a prática ao período apostólico, é reconhecidamente falso e apócrifo.
Um leitor mais leigo poderia estranhar a admissão do padre Steve Bigham quanto ao estado da questão:
"Existe uma teoria, então, constatando que os antigos cristãos não tinham imagens e eram hostis a elas porque sua religião proibia arte figurativa. Esta teoria, que podemos chamar de teoria da hostilidade, é aceita como um fato estabelecido por quase todos os pesquisadores do campo. Nós não conseguiríamos listar todos os livros que adotam este ponto de vista, mas nós podemos mencionar alguns que mostram o quanto esta ideia domina o panorama intelectual: no geral, escritores cristãos até meados do século quarto ou repudiam o uso de arte na Igreja, ou a ignoram completamente de tal maneira que se poderia supor que ela não existia." [1]
Conforme a História da Igreja passou a ser objeto de estudo acadêmico e sujeito à crítica dos pares, os estudiosos iconódulas se encontraram em um dilema: persistir na já ignorada apologética negacionista ou procurar dialogar o dogma com aquilo que a academia concedia ao Protestantismo. O padre Bigham, mesmo publicando por uma editora não-acadêmica como a Orthodox Research Institute, precisa reconhecer esses fatos para construir credibilidade, embora o faça à contra-gosto e mitigue isto o melhor que pode.
A constatação acadêmica é tão clara que sequer precisamos nos apoiar no referencial apologético protestante. Ernst Kitzinger, contado entre as maiores autoridades da área, é decisivo:
Dito isto, é fundamental conhecermos os meandros do processo de surgimento do iconismo. O culto às imagens não poderá, ainda, ser rastreado nos primeiros registros iconistas, dados que estes, por excelência, também são anticonódulas. Todavia, nesta nova fase da História Eclesiástica, a coexistência do aniconismo com o iconismo será responsável, com a popularização deste no longo prazo, pela corrupção iconódula.
Paulino de Nola, reconhecido como santo nas igrejas iconódulas, foi contemporâneo de grandes nomes como Agostinho, Jerônimo e Epifânio, todos estes três com visões aniconistas. Paulino, contudo, fez e defendeu algum uso de imagens. No decorrer deste artigo, porém, será revelado que suas motivações e testemunho tornam Paulino uma péssima referência de iconofilia.
Este escrito de Paulino, datado do século V [3], diz a respeito de um episódio onde o antigo santuário de Félix passou a ser decorado com representações pessoais de cenas bíblicas.
O fato de Paulino se sentir na obrigação de tentar justificar porquê introduziu estas imagens revela muito da visão predominante na época. "Accipite, et paucis tentabo exponere causas" (Carmina Natalicia. XXVII, 545). Como veremos a seguir, a própria idéia de imagens na Igreja era tão naturalmente absurda que obrigou o bispo de Nola a produzir uma defesa antecipada. A sua justificativa é a seguinte:
"Talvez possa ser questionado, por que razão, contrário ao uso comum, eu pintei esta sagrada habitação com representações de pessoas? [....] Aqui encontra-se uma multidão de rústicos de fé imperfeita, que não podem ler, os quais antes de se converterem a Cristo eram acostumados aos ritos profanos e obedeciam os próprios sentidos como deuses. Eu, portanto, pensei que seria conveniente animar com pinturas toda a habitação do santo. Pinturas então traçadas com cores poderão, talvez, inspirar estas mentes rudes com admiração. Inscrições são colocadas acima das pinturas para que elas possam explicar o que foi descrito com as mãos." [4] (Paulinus Nolanus. Carmina natalicia. PL XXVII, 541-550, 580-585.)
I) Era contrária ao uso comum. Isto é, o bispo pressupõe ser de conhecimento ao leitor da época que os cristãos não faziam e não tinham por tradição adornar edifícios religiosos com ícones, ou até mesmo fazer qualquer uso religioso de imagens pessoais no início do século V.
II) Era digno de uma tentativa de justificação. Não haveria necessidade de se defender algo que era tido como normal para a Igreja. Do contrário, porque estaria Paulino se justificando sobre algo que todos na Igreja já viam como normal?
III) O motivo para quebrar com o uso comum da Igreja consistia num problema situacional e extremamente específico: analfabetos, de histórico pagão ainda mal resolvido, que "obedeciam aos próprios sentidos como deuses". Além de impossibilitar uma ampla aplicação do iconismo,
IV) Admitindo ser contrário à Tradição da Igreja e de ter uma justificativa situacional, os resultados desejados não eram certos ou confiáveis; talvez, diz Paulino, as imagens possam gerar resultados positivos. Mas isto também significa que elas talvez não gerem. A proposta do bispo de Nola é uma aposta, dizendo respeito ao domínio das possibilidades, não das certezas (e nisto não seria ela vítima da Guilhotina de Hume?). Ao derivar uma decisão com fortes consequências teológicas em contingentes (ie. aquilo que é incerto, possível, ou duvidoso), Paulino agride o fundamento da ortodoxia cristã. A Doutrina Cristã Verdadeira não se fundamenta em especulações, mas em fatos e em certezas transcendentais ao próprio homem.
V) Paulino estabelece o uso didático de imagens do qual o papa Gregório Magno se alinharia, em 600 d.C. Isto significa uma condenação à iconodulia e a todas as formas modernas de iconismo.
VI) Por negar o culto às imagens, Paulino prova que a mesma não cumpre a Regra de São Vicente. Por consequência, ele também refuta o edifício completo do culto às imagens.
"Em um poema dos primeiros anos do século V, Paulino descreve um ciclo de cenas do Antigo Testamento a Nicetas, um amigo visitante.
[...]
Paulino parece estar bem ciente de uma duradoura hostilidade à imagens dentro da igreja. Ele toma grande cuidado para assinalar que elas haviam sido introduzidas meramente para instruir e edificar as mentes simplórias. No entanto, as interpretações alegóricas das quais Paulino associa as cenas de Rute e Orfa denunciam seu próprio comprometimento e interesse na iconografia, fazendo esta desculpa soar um tanto dissimulada." [9]
"E agora, observe que eles estendem seu júbilo a noite inteira, acordados e em grandes números, afastando o sono para longe com alegria e a escuridão com tochas. Se ao menos eles desfrutassem deste júbilo com intenções saudáveis, ao invés de entrar nas casas sagradas com cálices! Embora uma congregação sóbria nos permita ouvir um culto preferível, fazendo os hinos sagrados ecoarem com vozes imaculadas e apresentando uma canção de louvor ao Senhor como uma oferenda sem estarem bêbados, eu acho que essas alegrias devem ser perdoadas, se eles as compensassem com pequenas refeições, porque o erro roubou as mentes rudes; e a simplicidade, inconsciente de tanta culpa, cai em piedade, na falsa crença de que os santos se alegram quando vinho fedorento é derramado sobre seus túmulos...
Portanto, pareceu-nos um trabalho alegremente útil então embelezar as casas de Félix por toda parte com pinturas sagradas para ver se o espírito dos camponeses não seria surpreendido por esse espetáculo e sofreria a influência dos desenhos coloridos, que são explicados pelas inscrições acima deles, para que sua descrição possa esclarecer o que a mão exibiu. Talvez, quando todos mostrarem e relerem uns para os outros o que foi pintado, seus pensamentos se voltarão mais lentamente para comer, enquanto se saciam com um jejum agradável aos olhos. E talvez assim um hábito melhor, em sua estupefação, se enraíze neles, devido à pintura que desviou artisticamente seus pensamentos da fome. Quando alguém lê as santas histórias de obras castas, a virtude induzida por exemplos piedosos rouba-a; quem tem sede é saciado com sobriedade, o resultado é o esquecimento do desejo por vinho excessivo. E enquanto passam o dia olhando, na maioria das vezes as canecas são preenchidas com menos frequência, porque agora o tempo foi gasto com todas essas coisas maravilhosas, e menos com uma refeição" [11].
Myers faz importantes notas sobre a relação de Paulino com estes camponeses:
Mas, para o desânimo de Paulino, a celebração vêm, como se poderia esperar, com volumosas jarras de bebida. Num entusiasmo dionísico, os camponeses bebem, bebem e bebem.
Mesmo que seja óbvio que Paulino está desconcertado por uma atividade que sugere um culto bacanal não penas nas honras prestadas ao morto, mas até na oferenda sacrificial do culto ao morto [na forma de vinho], algo que Paulino surpreendentemente não censura no comportamento dos camponeses. [...] Em outras palavras, Paulino pensa que perdão deve ser concedido [...]. E quem é o culpado por isto? Ninguém menos que o próprio Diabo.
Eclesiastes 5:1
Eclesiastes 5:1
“O SENHOR, porém, está no seu santo templo; cale-se diante dele toda a terra” (Habacuque 2:2)
“Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Romanos 12:1)
“Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade” (João 4:24)
Paulino é culpado de negligência, pois não levou seu rebanho ao conhecimento de Deus, à disciplina e à devida reverência no culto. Hipócrita ou não, Paulino não agiu com a ortopraxia de um ministro da igreja: "diferente de outras atividades missionárias, que 'frequentemente assumiam uma postura confrontacional ou combativa, os esforços de Paulino ... parecem mais flexíveis'." [13]. A defesa de meios sensoriais e recreativos para satisfazer homens igualmente sensoriais e recreativos cai no desserviço do mal pregador que Paul Washer, pastor batista, alertou: "Os pastores carnais que usam meios carnais para trazer homens carnais para suas igrejas, continuarão a usar meios carnais para manter estes homens carnais em sua igreja carnal".
Rigorosamente, a teologia iconódula não considera símbolos e figuras metafóricas como ícones. O pavão, o peixe e a âncora não são eles mesmos "ícones", que constituem representações de pessoas sacras como Cristo e os santos.
"'A Trindade' e 'O Julgamento Final' eram descritos com emblemas e símbolos derivados da metáfora escriturística e das imagens imperiais. Alguns destes elementos, como o cordeiro, a pomba, a palmeira, o tecido púrpura e a coroa aparecem em muitos monumentos cristãos do quarto século e do início do quinto, e não foram inventados por Paulino" [14].
Neste sentido, para aquele período de início do século V, Paulino achava aceitável o uso de figuras simbólicas em igrejas, mas era forçado a admitir que representações pessoais, tais como ícones, eram contrários à Tradição da Igreja ainda por volta de 400 d.C. E isto, necessariamente, é uma distinção reconhecida pela teologia iconódula.
Mosaico de um passáro, em uma igreja melquita do Levante. A imagem profana foi cuidadosamente desfigurada por cristãos melquitas, na primeira metade do século VIII, sendo posta uma cruz, feita com as peças retiradas da mesma.
Não é difícil perceber as dificuldades que qualquer iconódula teria ao utilizar o Bispo de Nola no seu arcabouço de referências patrísticas. Porém, o fato deste documento ser autêntico e os iconódulas sofrerem de uma grave escassez de referências que eles mesmos não falsificaram leva muitos a usarem Paulino a seu favor. A referência textual da novidade das imagens, que configura um problema gravíssimo para a causa iconódula, é maquiado por diferentes apologistas papistas de maneira idêntica.
No início do século IX, a diocese italiana de Turim receberia um estrangeiro como seu novo bispo. Intelectual reconhecido, versado em Patrística e nas Sagradas Escrituras, o recém-empossado Cláudio logo se escandalizou com uma prática bem difundida na Itália de seu tempo: o culto às imagens. Virtualmente inexistente na Espanha, na Gália e na Alemanha, a idolatria vista por Cláudio foi suprimida através da iconoclastia. Naturalmente, isto atraiu muitos inimigos. Destes, destaca-se o monge – ou bispo – Dungal da Irlanda, que escreveu um tratado em defesa da veneração de imagens. Diversos padres papistas irlandeses nos últimos séculos exaltaram o esforço de Dungal, como o bispo P. J. Carew:
Nenhuma desonestidade é realment
[1] BIGHAM, Fr. Steven. Early Christian Attitudes toward Images. Orthodox Research Institute, 2004. p. 1-2.
[3] RANDALL, Randy C. The Reformation and the Visual Arts. 2007. p. 18.
[9] DAVIS-WEYER, Caecilia. Early Medieval Art, 300-1150: Sources and Documents. University of Toronto Press, 1986. p. 17-18.
[14] DAVIS-WEYER. ibid. p. 20.
Fantástico!
ResponderExcluirA conclusão é ridícula. Considerar o uso de imagens no Templo como uma inovação corruptora é a mesma coisa q dizer q Deus errou ao permitir imagens no Templo no Antigo Testamento. Aliás, partindo da sua "lógica" a própria existência de Templos deve ser uma corrupção já q os apóstolos não construíram Templos cristãos. O mau de vcs é não considerar o q vem do Antigo Testamento como agregador em gérmen da Tradição.
ResponderExcluirhttps://fraternidadenewman.wixsite.com/fnbr/post/s%C3%A3o-paulino-de-nola-como-o-blog-flancos-de-ferro-mentiu-para-voc%C3%AA
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