A Teologia das Imagens no Paganismo

Estátua desfigurada da deusa Afrodite, século I. Encontrada na Ágora de Atenas, atualmente no National Archaeological Museum in Athens. [nt.1]

O texto a seguir foi comissionado a meu pedido, por um especialista de paganismo clássico. Lucas Oliveira Ralla, ex-cristão que já pertenceu ao catolicismo romano e a ortodoxia grega, é atualmente adepto praticante da religião pagã tradicional e oniromante. Ele comenta:

“As estátuas consagradas aos Deuses, segundo a crença geral greco-romana, era que elas [as estátuas], aos serem consagradas, adquiriam parte da Energia vinda do Deus, tornando-a um receptáculo místico das energias desse Deus, mas não Ele em Si. Além disso, os Deuses podem sim vir a habitar as estátuas, e isto também sempre foi uma crença clássica, mas Eles não habitavam nela permanentemente, e sim temporariamente, vindo a deixá-la depois de um tempo e tornar a voltar. Tal "visita" geralmente acontecia durante rituais e cerimônias realizadas no templo ou santuário da Divindade, como podemos observar no relato do filósofo e estudante do neoplatonismo Eusébio de Mindus de seu encontro com o também filósofo e místico neoplatônico Máximo de Éfeso. O teurgista Máximo havia convidado Eusébio para uma cerimônia no Templo de Hécate; lá, cantando um hino e louvando a Deusa, fez com que a estátua da Deusa sorrisse e manifestasse risos. Portanto, a presença real dos Deuses nas Suas representações são plenamente verdade, assim como sua não-presença, mas é importante frisar que, mesmo não sendo habitadas momentaneamente, as representações continuam sendo depósitos sacros da Energia, Bondade e Luz Divinas.”

Em síntese: “A imagem não é o Deus, mas quando consagrada, assim como os ícones, passa a ser habitada pela Ænergia Divina, passando a ser como se fosse o próprio Deus.”


Fontes primárias utilizadas para embasamento textual e leitura complementar:

Maximus, 'Lives of the Philosophers and Sophists', 1921. Disponível em: http://www.tertullian.org/fathers/eunapius_02_text.htm#MAXIMUS.

Cícero, 'De Natura Deorum III'.

Gaius Florius Aetius. Chamas e Estátuas: Porque Nós Rezamos para Imagens. Disponível em: https://cultusdeorumbrasil.wordpress.com/2019/06/11/chamas-e-estatuas-porque-nos-rezamos-para-imagens/?fbclid=IwAR0OBGwYoKVzhLVBUuvslIgmFy3PTvGF8_Ab1vutLV37kPUS_ZX8kKkGmZs

  • Meus Comentários:

Não há necessidade de se adicionar mais ao que foi dito. Meu propósito com este texto é expor como enganosa a informação divulgada por certos expoentes da teologia iconodula atual, isto é, de que o Paganismo via seus ícones como deuses literais, confinados ou contidos na circunscrição da imagem em si. A finalidade deste argumento iconodula, por mais que não seja tão clara a mentes pouco sagazes, têm um intento pernicioso: distanciar, tanto quanto possível, quaisquer semelhanças teológicas entre o Culto aos Ícones, praticado pela seita dos ortodoxos gregos e dos papistas, com os cultos e práticas iconográficas de religiões pagãs. Isto evitaria não só a inconveniência da iconodulia ser teologicamente assemelhada ao culto idólatra, mas também afastaria a mesma dos ataques dos antigos Profetas que, agindo sob inspiração divina, ridicularizavam os ícones pagãos e a futilidade pecaminosa de suas práticas. Afinal de contas, se a Teologia Cristã das Imagens for reciproca aos elementos pagãos, não é ela mesma idólatra e anátema? Não seria, ela mesma, imputável das mesmas ridicularizações e condenações dos nossos Profetas?

Mas eu não vim aqui apenas depender da exposição do Ralla, eu seria muito misericordioso e leniente se assim o fizesse. De fato, 
“O filósofo pagão Celso, crítico do Cristianismo, fazia da rejeição cristã de imagens no culto como ponto de crítica. Ele alegava que os filósofos gregos entendiam que as imagens não eram, elas mesmas, deuses. De acordo com Celso, o culto aos deuses não tinha terminação na imagem (i.e. ícone) usada no culto, mas através da imagem era passada ao próprio deus, nunca parando no mero meio ou ícone. A imagem era símbolo do deus, não o deus per se; honrar o símbolo, então, era a forma de honrar o deus” [1]. 

A editora católica Paulus, na tradução da obra de Origenes (Contra Celso), admite que:
“Celso combate as ideias particulares do cristianismo. Confronta as doutrinas tradicionais com as dos judeus e cristãos, para mostrar a inferioridade destas sob todos os aspectos, na medida em que se afastam das doutrinas tradicionais. Por isso, o cristianismo professa uma doutrina sem valor. Estigmatiza como sectarismo e intolerância a recusa cristã de altares e imagens, do culto dos demônios e do imperador, provas de um comportamento político irresponsável, inconsequente e perigoso que enfraquece a autoridade e a força do Estado, expondo-o aos bárbaros iníquos e selvagens.” [2]

Sim, eu sei que você já ouviu falar dessa dialética do ícone como um protótipo. Na verdade,
“A filosofia de Celso para a defesa da idolatria é surpreendentemente similar com as justificativas teológicas para a iconografia mais tarde desenvolvidas por João de Damasco (676 - 749) e outros iconodulas.” [3]. 

 Não é por coincidência, ou mera "piedade popular", que os papistas e greco-orientais reciclaram teologia pagã: ela está na teologia catedrática da própria religião. Ela é oficial, credal, conciliar e baseada no arquiteto da doutrina formal iconodula.

Quando tive a oportunidade de conversar com o Professor Miguel Monteiro, um dos medievalistas mais prestigiosos de Portugal e especialista em Iconomaquia, eu lhe perguntei sobre a adulteração de um texto bíblico (1 Reis 6:23-29) por parte de Damasceno, indagando sobre a formação e erudição teológica do iconodula, ele me dissera:

“Ele tem muita coisa, os diálogos pelas imagens terão sido escritos numa idade mais jovem. Mas de resto ele tem um conhecimento vastíssimo quer de Bíblia quer daquilo que nós hoje chamamos de Patrística. O Andrew Louth diz que ele essencialmente foi um compilador e alguém que amadureceu e coalesceu a tradição patrística cristã até à data, que esse era o objectivo dele e que não aspirava a mais.”

É extremamente improvável que João Damasceno, ou "Al Mansur", tenha originado, da própria razão, argumentos originais sobre a doutrina do culto às imagens. Sendo ciente das fontes patrísticas, se a sua inspiração não derivou diretamente do paganismo, ela veio do próprio Diabo. Para concluir a questão:
“Os [pagãos] romanos frequentemente consideravam a falta de imagens religiosas entre cristãos como evidência prima facie de Ateísmo [...]. Como Celso, o politeísta fictício de Marcus Minucius Felix (morto em 250) e Atenágoras (c. 133 - 190). O fíctício Caecilius Natalis pergunta: 'porque [os cristãos] não tem altares, nem templos e nem imagens públicas?' A questão é: porque os apologistas da igreja primitiva estariam respondendo esta questão se a Igreja Primitiva usava ícones?” [3]


Com Deus e armas vitoriosas,

Pedro Gaião


  • Notas:
[nt.1] O vandalismo cristão de estátuas pagãs se tornou um fenômeno oficial por ação do Estado Romano a partir de Constantino Magno (r. 313-337), ou por conivência das autoridades imperiais com atividades populares ilegais, no mesmo período. As desfigurações seguem uma conotação teológica e cultural típica do cristianismo tardo-clássico: a cruz marcada na testa testifica um sinal de vitória sobre o ídolo e indicava um exorcismo da presença diabólica no ícone, permitindo sua estadia dentro dos templos cristãos como troféus, sem incorrer no sacrilégio de hospedar um ídolo consagrado para o templo do Senhor Deus. A desfiguração do nariz e da testa, igualmente, tem forte valor simbólico, testificando a perda de potentado, uma vez que na cultura romano-bizantina, a perda do nariz e a desfiguração do queixo são provas de inaptidão e perda da legitimidade pela qual um indivíduo exerceria poder.

  • Fontes e Referêncial Bibliográfico:

 [1] CARPENTER, John B. Themelios, vol. 43, assunto 3. Answering Eastern Orthodox Apologists regarding Icons. pp. 425-426.

[2] Origenes. Contra Celso. Editora Paulus, pp. 21.

[2] CARPENTER, John B. Themelios, vol. 43, assunto 3. Answering Eastern Orthodox Apologists regarding Icons. pp. 425-426.

[3] ibid.












Comentários

  1. Esse texto me fez lembrar das crenças pagãs do oriente, em especial do Japão, especificamente do período Sengoku, onde a crença no poder dos demônios manifesto nos ícones era tão grande ao ponto em que se acreditava que quando um demônio era ferido seu ícone igualmente era ferido. O anime Dororo trás esse aspecto da cultura pagã japonesa, nele, um garoto oferecido aos demônios perde quase todas as partes do seu corpo e tem que matar os demônios para recuperar essas partes do seu corpo, toda vez que ele matava um demônio um ícone referente à esse demônio no santuário dos demônios que o pai dele o ofereceu era destruído e uma parte do seu corpo era recuperada. Interessante ver como os cultos pagãos tem grandes semelhanças entre si.

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