A Cruz de Nina: hagiografia iconoclasta no Cáucaso do Século XI
Uma vez sepultada a narrativa cripto-apologética de que a Igreja Armênia — e até sua vizinha e irmã, da Geórgia — nunca tiveram qualquer envolvimento com posições aniconistas, tendo até mesmo as repudiado e impedindo uma suposta tentativa de infiltração na Idade Média, podemos olhar com mais atenção aos registros sobreviventes e nos perguntar: será mesmo que quase todos os escritos aniconistas foram destruídos?
Ao passo que a documentação aniconista sobrevivente foi cuidadosamente omitida pelo clã Nessessian e por outros tantos historiadores-fiéis da Igreja Armênia, resta saber se, na verdade, não possuímos um número de obras interpoladas [i]; o que, dada as dificuldades de tradição manuscrita no Ocidente, pode ser impossível de averiguar. Um campo mais frutífero, mas não menos trabalhoso, se encontra numa análise atenciosa e paciente das diversas obras cronísticas do período que, por conta de seu alinhamento implícito ou corriqueiro, foram ignoradas por iconódulas, permitindo sua conservação.
É importante dizer que, até então, a própria academia ocidental passou despercebida por tais detalhes; não apenas pela deferência prestada à interpretação anti-profissional de fiéis e clérigos da Igreja Miafisista Armênia, mas pela extrema sutileza deste aniconismo, sendo assim fáceis de se perder sem uma leitura atenta e um discernimento de procurá-las. Dada a incapacidade do próprio clero iconódula de encontrá-las, a falta acadêmica é perdoável.
SANTA CRUZ DE NINA (SÉC. XI)
"Uma História da Santa Cruz de Nune, líder da Geórgia" é um relato hagiográfico do século XI, de autoria de um certo padre chamado Aharon [1]. A lenda gira em torno da famosa Santa Nina da Geórgia (c. 296 - c. 340), considerada "Igual aos Apóstolos" e "Iluminadora da Geórgia" [ii]. À despeito deste relato ser um exemplo perfeito da extrema corruptibilidade da tradição eclesiástica [iii], nosso real interesse é analisar um aspecto desapercebido pelo editor e por outros leitores da obra, durante a narrativa de evangelização da santa:
"Agora, a bem-aventurada Nune procurou homens de confiança [e] enviou-os a São Grigor, [perguntando] o que ele poderia ordenar que ela fizesse a partir de então, pois os georgianos aceitaram de bom grado a pregação do Evangelho.
Ela recebeu instruções dele para destruir os ídolos, assim como ele próprio havia feito, e estabelecer o sinal honroso da santa cruz até o dia em que um pastor lhes fosse dado como guia. Ela imediatamente destruiu a imagem de Aramazd, deus do trovão, que ficava fora da cidade – com o poderoso rio [Kura] fluindo no meio. Todos estavam acostumados a cultuá-la pela manhã, em seus telhados, pois era visível para eles. Mas se alguém quisesse oferecer sacrifício, atravessava o rio e sacrificava diante dos templos. Mas quando Nune destruiu os ídolos, os magnatas da cidade levantaram-se contra ela e perguntaram: 'A quem então cultuaremos em vez dos ídolos?' E eles foram instruídos [a cultuar] o sinal da cruz de Cristo. Fizeram-no e instalaram-no numa bonita colina a leste da cidade, separada dela por um pequeno rio. E todo o povo a cultuava de manhã, em seus telhados. Mas quando foram até a colina e viram um pedaço de madeira talhada, que não era obra de artesãos, muitos o desprezaram e foram embora, alegando que sua floresta estava cheia desses objetos.
Mas o Deus benevolente, olhando para o tropeço deles, enviou do céu uma coluna de nuvem, e a montanha encheu-se de um doce odor, e ouviu-se o som agradável de um exército cantando salmos, e brilhou uma luz na forma de uma cruz, do mesmo formato e tamanho da cruz de madeira, e sobre ela havia doze estrelas. Nisso todos acreditaram e adoraram. Depois disso, milagres de cura foram realizados pela cruz.
[...]
Aprendemos os detalhes até agora com o historiador Agathangelos" [2].
É extremamente pertinente reparar que, na narrativa, a instrução dada por Gregório, o Iluminador da Armênia (m. 328), se refere à destruição de imagens pagãs e sua substituição não por imagens de Cristo e dos santos, mas de uma cruz anicônica; não a cruz com imagens de Cristo e dos santos, mas apenas a cruz. Quando os georgianos perguntam o que eles deveriam venerar, a resposta não é o crucifixo e demais imagens de Cristo e dos santos, mas a cruz. E foi justamente o culto anicônico da cruz que desagradou o anseio iconófilo de um grande número deles, de histórico pagão, o que teria sido simplesmente remediado caso a santa permitisse o uso e culto de imagens de Cristo e dos santos, como fazem os iconódulas; na verdade, este problema sequer teria existido caso a iconodulia cristã tivesse sido introduzida na forma como os iconódulas a introduziriam e pensavam que historicamente foi introduzido.
Tendo ponderado todas estas coisas, é extremamente óbvio concluir que essa narrativa foi inventada a partir de uma ótica iconoclasta medieval, ou seja, do culto à cruz — uma prática tipicamente medieval, de origem grega — ao invés do culto às imagens. E caso não tenha sido claro o suficiente até aqui: mesmo sob uma ótima extremamente caridosa, boa parte do que é narrado neste relato nunca existiu. O que, todavia, não muda o fato constatável por qualquer historiador profissional de que essa hagiografia reflete um testemunho iconoclasta estabelecido no coração da Tradição Caucasiana; o hábito de inventar e imaginar a história como ela nunca ocorreu, infelizmente, é um traço típico do Cristianismo desde o período tardo-antigo.
Um último apontamento a se fazer do texto, ainda, é a intervenção divina: diante do repúdio iconófilo dos georgianos, Deus opta por intervir criando um milagre anicônico em forma de cruz. Isto é extremamente significativo quando, séculos atrás, já se cria e afirmava a ideia de que imagens sacras ora caiam do céu, ou eram produzidas ou elevadas de forma miraculosa. A dificuldade talvez seja na seguinte questão: o criador original do relato fez uma narrativa tão anti-iconófila como forma de combatê-la ou ela seria um produto natural e inconsciente desse espírito radicalmente aniconista?
Mais a frente, veremos indicativos de uma realidade eclesiástica aniconista no Cáucaso, após uma devastadora invasão persa da região:
"O abençoado Andreas tentou resgatar o Santo Sinal [a Cruz] de Nune dos insultos dos ímpios pagãos. E a santa princesa Shushanik implorou a Andreas que evacuasse imediatamente o Santo Sinal de Nune e as muitas outras relíquias dos santos — aquelas que haviam chegado até ela de São Grigor — bem como os vasos das igrejas e as numerosas cruzes. Ele reuniu tudo isso e até removeu a Cruz de Nune da colina, pois os magos chegaram [e] forçaram a corte [do marquês] a montar uma casa de fogo. " [3].
O resto do relato continua sobre como Andreas se esforçou para conservar e salvar a Cruz de Nune e os demais objetos guardados — nenhuma delas imagem —, seguindo para os milagres da dita cruz e de seu culto, com termino cronológico em 913/914 d.C. [4].
Ainda que não saibamos se a obra como temos é fruto do século XI, uma margem de composição final entre os séculos X e XI é contemporânea ao período em que, pelas poucas fontes que temos — e que profa. Serarpie der Nessessian tentou distorcer — os aniconistas estiveram no controle da Igreja Armênia e sinais de uma iconomaquia persistente, em alguma escala, podem ser vistos. Neste sentido, a composição final, tendo ou não sido feita pelo padre Aharon, pode ter uma tentativa de construção aniconista no período, mostrando, assim, que o aniconismo caucasiano persistiu à queima de arquivo do iconodulismo por meio da sutileza, mas, sem dúvida, ele existiu, e com uma dimensão maior do que os miafisistas gostariam de admitir.
Bom dia Gaião, alguma recomendação de livro em português ou inglês sobre aniconismo?
ResponderExcluirÉ algo que eu sempre tive dúvida, sobre a Igreja Armênia e suas raízes, porque sendo uma Igreja organizada nacional primaz, é por óbvio que se esperaria que eles tivessem alguma tradição que remontasse a um período de sã doutrina, mas aparentemente os hereges conseguiram destruir a história da Igreja verdadeira de tal forma que só temos pistas do que se passava naqueles tempos de fato.
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