A Controversa Epístola de Papa Eugênio II (824): tolerância para aniconismo, iconismo e iconodulismo

  




O breve reinado do Papa Eugênio II (r. 824-827) tem sido lembrado na historiografia como um dos períodos de maior influência e intervenção do Império Franco sobre o Papado [i]. Eugênio, cuja vida anterior nos é praticamente desconhecida e cujo governo é limitado à pouquíssimas linhas no Liber Pontificalis, tornou-se papa em uma conturbada, política e provavelmente corrupta eleição [ii] — onde seu pertencimento à mais fina casta da alta nobreza romana e sua boa relação com a aristocracia da cidade, a qual autores católicos frequentemente descrevem como gananciosa e corruptora da instituição eclesiástica, têm sido apontados como determinates nesta ascensão [iii]

Ainda no início do seu governo, quase que imediatamente após conceder uma série de poderes interventores à autoridade franca em troca de apoio militar e político contra um candidato rival ao Papado [iv], Eugênio teve que lidar com um problema à Oriente: o Império Bizantino, que havia oficialmente retornado à doutrina iconoclasta dez anos atrás, quis promover sua causa tanto ao Papa quanto ao Kaiser Luís. A única resposta conhecida de Eugênio consiste numa epístola preservada nos documentos do Sínodo de Paris (824): por petição do imperador Luís, o Papa Eugênio autorizou que os bispos francos se reunissem lá para "explicar a questão das imagens" ao iconoclastas bizantinos.

Apologistas romanistas tentaram por séculos negar a existência do Sínodo de Paris [v], uma vez que este confirmava as posições e a historicidade do Concílio de Frankfurt (794) e dos Livros Carolinos [vi]. Para manter a narrativa palpiteira de que ambos eram falsificações calvinistas do seculo XVI, o Sínodo de Paris também precisava ser uma falsificação protestante. Alguns tentaram negociar que, na verdade, apenas o Sínodo de Paris era falso, alegando que Carlos Magno e a Igreja transalpina se corrigiram bovinamente das suas "heresias" após o Papa Adriano I mostrá-los, através de mentiras, palpites, argumentos ruins e ameaças, a doutrina apostólica que eles tinham entendido errado por conta apenas de uma tradução ruim [vii] — afinal, Carlos Magno tem um pézinho no rol dos santos católicos, a Iconodulia supostamente é uma Tradição da fé de sempre e a Igreja sempre reconheceu a autoridade papal do mesmo jeito que reconhece hoje (Concílio Vaticano I, §1822). Para o desencanto romanista, é unânime até entre os acadêmicos católicos modernos que os francos persistiram em um iconismo moderado, anti-iconódula. 

É claro que tudo isso conjura dúvidas realmente pertinentes sobre se Eugênio, a quem vamos supor ser iconódula, sequer sabia que a Igreja transalpina repudiava o iconodulismo que parece ter sido tão popular na península itálica. Se ele sabia, e parece ser particularmente provável que ele soubesse [viii], como interpretar sua autorização ao sínodo? À menos que ele esperasse que os francos não seriam ousados o suficiente para condenar a iconodulia com a sua autorização, isso só poderia ser explicado caso sua posição fosse com divergências, seja por convicção, cinismo ou covardia [ix]

Eugênio recebeu as atas parisienses, mas não emitiu nenhum tipo de condenação, crítica ou discordância [x]. Por si só, a leniência e conivência com este ato consumado de heresia e cisma nos adianta algumas coisas sobre ele. Se seguirmos o raciocínio do próprio cardeal Belarmino, Eugênio é digno de condenação por toda a Igreja, do Magistério aos fiéis leigos [xi]. Sobre à falta de registros de qualquer reação papal à situação, o catolicíssimo padre Horace Mann tenta sugerir que o Papa simplesmente "achou melhor não continuar a questão", citando como exemplo o comportamento de Adriano I [xii].

Até o fim de seu governo, Eugênio continuou fugindo da questão das imagens. A ocasião perfeita para reafirmar sua posição, mesmo sem necessariamente condenar iconoclastas e iconistas, como se esperaria de um iconódula covarde, foi justamente no Sínodo de Roma (826): lá, na sua própria residência, em um sínodo local peninsular, com 62 bispos italianos que muito provavelmente eram todos iconódulas [xiii], ele teria a concordância e a seguridade perfeitas para afirmar a posição iconódula. Mas, ao invés de fazê-lo, mesmo que corriqueiramente, mesmo estando em pleno conforto e ambiente apropriado, mesmo com precedentes históricos de seus antecessores nas mesmas circunstâncias, ele optou por simplesmente discutir questões disciplinares — estas que inclusive revelam o quão ignorante e néscio era o clero peninsular, dos bispos ao baixo clero [xiv], será que é surpresa para alguém que esse mesmo clero fosse iconódula?


AS CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS DO ROMANISMO SOBRE A CARTA EUGENIANA



A carta de Eugênio pode se tornar uma peça essencial para entendermos esta estranha leniência papal. Assim como o Sínodo de Paris, ela foi acusada por romanistas de ser uma falsificação. Como o assunto morreu relativamente cedo, não é possível dizer com muita certeza se a narrativa de falsificação da carta foi mais duradouro que a acusação de falsificação das atas parisienses, que continham a carta.

Neste momento o leitor deve estar conjecturando — e com razão — que o motivo para a negação da autenticidade da carta tem a ver com alguma coisa em seu conteúdo que contradiz as expectativas romanistas de ortodoxia. Isto é, ou mostra um Papa covarde, ou um Papa herege. 

O bispo Giovanni Domenico Mansi, obviamente defensor da causa romanista, seleciona os comentários de "intelectuais" para refutar a autenticidade da carta [xv], como o jesuíta Jacques de Sirmond (1559-1651):

"na epístola eles tornam Eugênio tão doloroso que, no que diz respeito às imagens, todos devem ter liberdade na igreja: quer alguém queira tê-las ou não, quer goste de cultuá-las ou não — como se essas coisas pudessem vir à mente do supremo pontífice, ou eles acreditassem que ele poderia ser persuadido por elas. Tendo, portanto, omitido estes, que são absurdos e, portanto, refutados apressadamente pelos maiores cardeais Belarmino e Baronius, e depois pelos próprios gauleses, tendo mudado de lealdade e aceitado a veneração de imagens que eles condenaram" [1]. 

O trecho nos revela muitas coisas: 

1) Que a carta trata toda a controvérsia iconológica como um adiaforo, onde uma pessoa ou congregação pode se alinhar com qualquer uma das três posições sem ser condenado ou coagido, pelo princípio de liberdade cristã — uma forma bem luterana de se expressar, caso o Luteranismo abarcasse iconodulia. 

2) Que a intelectualidade católica julga que a carta é falsa porque eles pressupõe que um papa não poderia se expressar dessa maneira, ou seja, puramente fálacia de petição de princípio, a lei reguladora de toda a pesquisa crítica de vigaristas como Belarmino e Barônio, que simplesmente julgam que vários documentos patrísticos que contradizem a fé que eles conhecem em suas eras (e.g. João Damasceno negando o purgatório e tendo uma visão melquita do assunto) é simplesmente mentira, enquanto a evidência não-contestada é distorcida em niveis patéticos. Sem a secularização, países católicos ainda estariam repetindo essas mentiras por conta do controle megalomaníaco do Papado sobre a informação.

3) Que a postura liberal de Eugênio — que se não é àquela adotada pela massa romanista, seria facilmente adotada pelo fiel e o militante médio ao ler esta carta — é contrária à doutrina romanista, o que nós já sabemos e provamos, através do que Constantinopla IV, Niceia II e os sínodos romanos do século oitavo tem dito de forma clara, e que os acadêmicos, inclusive católicos, têm confirmado. 

4) Que, quando somos acusados de mentir ao constatarmos que a doutrina romanista afirma que a iconodulia é mandatória e necessária à salvação [vii], acabamos provando que a Tradição se perde e se corrompe, ao ponto de chegar no seu extremo oposto em determinada época futura, onde a “Tradição Viva” repudia o que antes era defendido com unhas e dentes. A ideia de Tradição Romanista, no fim, é um embelezamento da suposição cega de que as crenças atuais sempre foram seguidas em tempos passados.

 5) Que, dentro de duas gerações, nem o suposto líder supremo e infalível sabia mais o ensino de um recente Concílio Ecumênico, perdendo a Tradição Infalível de seus sucessores. E o pior de tudo: ele já estava vivo quando esta Tradição e este dogma foram proclamados [viii].

6) Que na cabeça dos maiores intelectuais do Romanismo, o vácuo de fontes transalpinas entre os séculos IX e XI, quando a iconodulia parece ter se tornado generalizada onde anteriormente foi condenada oficialmente e repetidas vezes, de alguma forma refuta o iconismo e prova a validade da iconodulia. Como diz Bruno Lima, o Romanismo é um suicídio intelectual.

Em suma, fontes católicas afirmam que a carta quebra a ortodoxia de um dogma recente à época e afirma uma posição heterodoxa e incompatível com a fé católica de sempre, distorcendo o dogma iconódula e tolerando heresias. A posição que Belarmino, Barônio, Mansi, Mann e tantos outros autores papistas repudiaram, ironicamente, é a postura normativa de praticamente todos os católicos do mundo. Se Eugênio é um herege, e é impossível que ele não seja, distorcendo “a verdade” e permitindo a “heresia”, então quase todo o Romanismo atual é similarmente herético. 

É bastante curioso que a carta só tenha sobrevivido nos apêndices dos manuscritos do Sínodo de Paris, redescobertos no século XVI, mas não em outros lugares. Também é bastante curioso que, de acordo com o padre Mann, “obras atribuídas ao nome de Eugênio II fossem conhecidas no século XVI”, mas nenhum desses manuscritos tenha sobrevivido na Era da Prensa Móvel; o epistolário eugeniano do padre Mansi, por exemplo, só contém uma única carta, virtualmente irrelevante dentro do polêmico contexto histórico onde este Papa viveu. Quando consideramos que o Romanismo tem um histórico de queima de arquivo, censura, destruição de obras antiquíssimas e de domínio da memória coletiva através de narrativas ideológicas, será que não é absurdo pensar que essas perdas, dentro de um curto intervalo de dois séculos, tenham sido intencionais?


A CARTA DO PAPA EUGÊNIO II AOS IMPERADORES MIGUEL E TEÓFILO


Apesar da enorme importância que a carta pode desenvolver no debate sobre papas heréticos, ela é desconhecida para a própria academia moderna. E isto não é indício de que a carta seja falsificada, muito pelo contrário: se fosse uma falsificação carolíngia, tese que se resume ao raciocínio circular romanista, o assunto seria relembrado e tratado com o interesse acadêmico, que já expôs muitas das fraudes iconódulas na Patrística e nos documentos de sua época; na verdade, a própria Apologética Romanista estaria aproveitando a situação para tentar mitigar o seu legado vigarista. 

Ao invés disso, é quase como se a Igreja tivesse tratado de abafar o assunto de tal forma que mesmo o rev. John Mendham, em 1850, se limita a dizer que ela não deve ser autêntica porque: “para os protestantes ela é muito boa, e para os católicos ela é muito ruim”. Nenhum dos acadêmicos que eu tenho contato conhece a carta ou qualquer coisa relacionada à ela. Ela é simplesmente um documento perdido no esquecimento: e por estar esquecida, nunca se produziu uma tradução do original latino.

Apesar das limitações com a tradução, consegui entender o polemicismo que ronda o documento, onde pode-se confirmar não apenas a heterodoxia de Eugênio, como o repúdio de formas de veneração à ícones positivadas pelo próprio Concílio de Niceia II:

"Portanto, até hoje o mesmo costume é mantido entre nós, porque nenhuma autoridade o ordena, ninguém o ordena: similarmente, porque nenhuma autoridade o proíbe, ninguém o proíbe.
[...]
E, portanto, já que assim é, nos resta dizer que se deixe que não o façam os que não quiserem, para que, no entanto, os que quiserem ou queiram tê-las por esse empréstimo (como já foi dito antes), não se contradigam nem um pouco ao fazê-las ou tê-las. E da mesma forma aqueles que desejam tê-las, de forma alguma obrigam os que não querem a tê-las ou fazê-las. E assim, pela autoridade de Deus, essa pessoa é preservada ilesa, enquanto está disposta à precaver-se do culto ilícito; e aquele que não deseja tê-las, por precaução de desprezo ilícito, sem dúvida poderá continuar ilesa.

E assim, com a misericórdia de Deus, imitando a maneira de nossos ancestrais nas imagens ou pinturas, em ordenar ou proibir, em ter ou não ter, em cultuar ou não cultuar, até agora passamos ilesos deste assunto, confiando no Senhor, e não temos dúvidas de que assim continuaremos. Portanto, todos aqueles que desejam tê-las devem ser advertidos, para que, por causa do seu amor, não orem a elas de qualquer maneira, abracem-nas além do necessário ou de alguma forma imponham a elas um culto ilegítimo. " [3].

Eugênio, apesar de iconófilo, permite a possibilidade de aniconismo. Apesar de permitir as três posições, admite a existência de abusos como, por exemplo, dirigir rezas às essas imagens, algo que também era prática iconódula na época, e ainda é hoje. De acordo com o Papa, não se deve dirigir orações a uma imagem de jeito algum (vel quolibet modo orando), assim como para Anastácio de Antioquia (c. 600), os santos poderiam ser venerados, mas nunca se deveria orar a eles; esta "meia veneração" anastaciana, como observada em Niceia II (787) era simplesmente inaceitável. Por algum motivo, os autores romanistas omitem essa heterodoxia eugeniana: porquê?


CONCLUSÃO


Que a história da Iconomaquia Bizantina foi densamente re-escrita pelos "vencedores" é um fato inegável para historiadores acadêmicos, sejam eles católicos, protestantes ou seculares; que o próprio Papado também foi alvo desta nessa reconstrução distorcida também já foi levantado por historiadores como a Dra. Francesca Dell'Acqua [ix]. Um Papado militante, defensor da ortodoxia, erudito e resoluto na sua política de exortação enérgica substituiu o histórico Papado mais frouxo, inculto, moderado no seu tom, adepto do protesto silencioso diante de uma terrível e impopular heresia [x], receoso na exortação e contraditório à projeção de autoridade que foi feita mais tardiamente sobre ele.

A postura de Eugênio não se torna totalmente incompreensível à luz do estranho comportamento de seu imediato antecessor. Pascal I, conhecido por ser menos submissivo à autoridade imperial franca, ainda assim limitou-se à tratar da controvérsia apenas uma única vez [xi]. Numa ofuscada carta, ele escreveu apenas UMA epístola contra à negação da iconodulia que era manifesta em seu tempo: nela, onde pretende provar a validade das imagens, não encontramos um àtomo em defesa da iconodulia, como bem reconheceu o historiador católico Thomas F. X. Noble [xii]; na verdade, a carta sequer defende que a iconofilia é obrigatória, tendo a defesa se limitado à sua validade. Talvez por isso, apesar da "alta qualidade filosófica" da carta — pelo menos para padrões iconódulas, ela foi miseravelmente conservada em apenas dois manuscritos, e de forma fragmentária: estariam os iconódulas insatisfeitos com a falta de compromisso no Papa? Na verdade, deveriamos supor que Pascal e Eugênio sequer eram iconódulas simplesmente porque essa parte da narrativa papista não é tão manifestamente indigna de crédito?

A Carta de Eugênio caminha na confirmação das constatações da Dra. Dell'Acqua e de outros: se continuamente iconódula, o Papado foi frouxo; algo que, além da carta, é provado e reforçado pela completa negligência de Pascal, Eugênio e Valentino — pelos rumores da época, Valentino foi amante ou filho de Eugênio — com o iconoclasmo aberto e militante de Cláudio de Turim. Cláudio morreria bispo, debaixo do nariz dos Papas, sem ser perturbado por ninguém além de inofensivos tratados.



Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS:

[1] SIRMOND, Jacques apud Sacrorum Conciliorum. Nova et Amplissima Collectio, vol. 14, p. ???. Veneza: 1769. Disponível em: <https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=njp.32101078252150&view=2up&seq=10&size=150>. Acesso em 24 de dezembro de 2022.

[2] ibid.

[3] ROMANI PONTIFICIS AD MICHAELEM ATQUE THEOPHILUM IMPP. GRAECORUM. apud Sacrorum Conciliorum. Nova et Amplissima Collectio, vol. 14, p. 463. Veneza: 1769. Disponível em: <https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=njp.32101078252150&view=2up&seq=10&size=150>. Acesso em 24 de dezembro de 2022.

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NOTAS:


[i] Vide autores católicos como Eamon Duffy (Saints & Sinners: A History of the Popes, 3rd ed. Yale University Press, 2006, p. 97) e Horace Mann (Pope Eugene II. The Catholic Encyclopedia. Vol. 5. Nova Iorque: Robert Appleton Company, 1909), se a constatação de autores seculares não bastar. 

[ii] Não é muito útil discutir o quão mais política, manipulada, terrena e até comprada esta eleicão foi em relação às demais do mesmo período ou de épocas melhor lembradas pela decadência generalizada do Papado, como a Pornocracia e o Papado de Avinhão, onde talvez a proliferação do hábito de escrever tenha sido um fator para a nossa percepção de corrupção.

[iii] A preeminência de fatores políticos aos devocionais têm sido praticamente a regra das eleições do Papado Medieval e Renascentista. Pertencer à nobreza e traçar nobreza contínua nos seus ancestrais constituía uma quase-regra das eleições papais no nosso período. O escudo heráldico papal, originalmente, era meramente o brasão já utilizado pelo clã do candidato eleito, e uma marca de pedigree das quais um plebeu — como é o caso dos Papas recentes, que têm todos seus próprios brasões — não tinha direito de usar; eventualmente, o fenômeno secular da heráldica nobliárquica no clero eventualmente desenvolveria seus distintivos religiosos, permitindo identificar prelados de seus respectivos parentes no laicato. 

[iv] A Constitutio Romana, assinada em 11 de novembro de 824, alguns meses após a eleição — na época ainda contestada — de Eugênio, é dividida em 9 artigos, assegurando a soberania conjunta do Papa e do Imperador na Itália, mas ao mesmo tempo cedendo muitos poderes da Igreja ao Imperador: antes de ser consagrado, o Papa eleito era obrigado a jurar obediência ao Imperador diante de um legado imperial — do contrário sua eleição nunca seria válida. A Constituição também retornou o costume estabelecido pelo Papa Estevão III (769), na época abandonado, em que o clero e os leigos participariam da eleição papal (até porque, o Papa era considerado o líder da república romana, uma cidade-Estado teocrática).

O Papado, em sua longa história de quebrar juramentos e tratados solenes, também viria a repudiar esse acordo no governo do Papa Marino I (r. 882-4), mas acabaria se contradizendo e retornando ao acordo no Diploma Ottonianum de 962 entre o imperador Otão I e o Papa João XII. Até o fim da Querela das Investiduras (1075-1124), o privilégio imperial na confirmação ou indicação de um novo papa seria um ponto de disputa entre as "duas espadas", com desdobramentos nos conflitos mais tardios entre guelfos e guibelinos. 

Embore, sem dúvidas, a Constitutio Romana soe heterodoxa, abusiva, negadora da "Tradição" e um crime contra a "autoridade perene e sempre reconhecida" do tipo de Papado que vemos nos últimos dois ou três séculos, esse controle imperial sobre a prerrogativa papal sequer é inovação franca, sendo vista em análogos durante o chamado Papado Bizantino, quando o Império Romano Oriental, da conquista justiniana da Itália (553-4) até meados da Primeira Iconomaquia (752), controlava quem era eleito ao Papado, se seria eleito e até se seria deposto. Justiniano agiu ao seus próprios caprichos depondo o Papa Silvério, eleito por godos, e elegeu Vigílio, responsável por exilar Silvério a uma ilha desolada onde o antigo Papa acabaria por morrer de fome; após a morte de Vigílio, Justiniano ainda colocaria Pelágio I, suspeito de heresia, como o novo Papa.

Se é necessário explicar, a autoridade papal, tão eficiente e tão centralizada como foi vista no Concílio Vaticano I (1869-70), só foi possível graças ao complexo jogo político da instituição papal com e contra sua nobreza e plebe local, Estados, conquistadores e caudilhos, ora aliados, ora inimigos, dentro do vácuo de poder secular que se seguiu à Queda do Império Romano Ocidental, no século IV. Se tem algo de divino neste astuto arranjo recheado de depravação política, moral e doutrinária, é o desígno profético de destruição daquela que merece ser chamada de A Grande Prostituta.

[v] Existe uma discussão razoavelmente insignificante sobre o status de Paris como um "sínodo". Para apologistas católicos antigos, isto indicava uma organização formal e solene — mesmo sendo apenas um concílio nacional — que contradisse um dogma proclamado num concílio ecumênico de meio século atrás e que — mesmo sem intenção — ofendeu à dignidade e autoridade do Papa. Como muitos desses apologistas sequer acreditavam na existência deste concílio, dado que ele contradizia sua visão mitológica de história da Igreja, termos derrogatórios como "conciliábulo de Paris" foram utilizados junto de termos mais neutros como "convento". Diante deste assunto, deve-se mencionar que o que ocorreu em Paris foi um concílio em tudo, menos no nome: uma vez que Luís e os bispos participantes estavam deliberadamente tentando evitar — pelo menos esta era a intenção deles — choques muito diretos com a autoridade papal, e a alcunha de sínodo ou concílio lhes parecia convidar esse confronto direto, sendo por eles não utilizada na ocasião. Por razões de uso historiográfico e de pragmatismo, trataremos a convenção como "Sínodo de Paris". 

[vi] Para recapitular o que foi dito em outras partes. Quando o Libri Carolini foi descoberto no século XVI  por autoridades católicas e explorado por João Calvino e os teólogos da Reforma, a obra foi acusada de ser uma falsificação calvinista e posta no Index de Livros Proibidos da Igreja Católica, destruíndo exemplares circulantes e arrancando-a das mãos de muitos estudiosos católicos. Até sua saída do Index, em 1920-30, católicos do início do século XX — assim como basicamente qualquer indivíduo não-católico em países católicos pré-secularização — deveriam solicitar uma burocrática petição com o bispo local, que daria seu parecer autorizando ou não a sua posse e estudo; o par de autores Richard Leigh e Michael Baigent recordam que, antes da abolição do Index em meados do século XX, era normal ver freiras e seminaristas sendo obrigados a peticionar autorização para obter e ler obras de filosofia que a grade universitária demandava nas matérias do curso, mas que a Igreja proibia. 

Naturalmente, o Concílio de Frankfurt (794) foi arrolado junto com os Livros Carolinos na acusação de falsificação calvinista. A descoberta das atas do Sínodo de Paris (824), que mencionava a existência de ambos, correu junto com a descoberta progressiva de manuscritos de época conservando estas fontes, assim como sua referência cruzada em cartas e tratados contemporâneos, da Resposta de Adriano (c. 790) aos tratados francos do século IX. Mesmo com a inviabilidade do negacionismo, vários revionistas tentaram negociar as evidências, admitindo umas e negando outras (como o sínodo parisiense). 

Não é necessário relembrar que a apologética romanista histórica, assim como a atual, é, para quaisquer fins, indigna de consideração prévia na interpretação de fontes; embora seus representantes ainda tentem arrogar o privilégio de juízo nesta tarefa, que além de petição de princípio, continua se provando viciada e de má fé. Fechemos, então, com o atestado de um historiador católico e acadêmico desta área:

"A Iconofilia carolíngia não cruzou para a iconodulia [...]. Quando Theodulf encontrou argumentos sobre a santidade das imagens na acta nicena, ele se escandalizou, boquiaberto de tão horrorizado. Imagens eram meramente madeira e tinta. Uma imagem que é velha e defeituosa pode ser descartada. Apenas Deus é verdadeiramente santo. [...] Mas nenhuma imagem pode, sequer, ser santa. É divertido notar que quando o Opus Caroli de Theodulf foi descoberto e publicado por eruditos calvinistas no século XVI, a Igreja Católica respondeu o colocando no Índex de Livros Proibidos, alegando ser uma fraude recente designada para manchar Carlos Magno e o ensino tradicional católico sobre as Santas Imagens. Porque, é claro, as imagens no Ocidente adquiriram santidade nos séculos posteriores ao período carolíngio." (NOBLE, T. Images, Iconoclasm and the Carolingians. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2009)

[vii] O cacoete de que os carolíngios repudiaram Niceia II meramente por conta "de uma tradução ruim" é um mito derrubado há séculos, inconsistente com as próprias fontes primárias e com toda a pesquisa que se tem feito no assunto, mas que sempre persistirá enquanto a Apologética Católica continuar repetindo desinformação, e enquanto houver católicos e simpatizantes manipuláveis e crédulos que não verificam informações e não alertam seus pares do que eles chamam de "equívoco infeliz e desculpável"; ou seja, nunca. 

[viii] Como demonstrado pelo Dr. Noble, tanto os francos quanto os bizantinos estavam bem informados de suas respectivas posições e da posição italiana; os documentos revelam, ainda, que ambos presumiam ou sabiam que a posição papal era iconódula. Embora Noble afirme que o Papado necessariamente sabia do anti-iconodulismo carolíngio, eu trato como provável, pela falta de evidência positiva e em virtude dos contatos Roma-Império; como mostraremos no decorrer do texto, o alto e baixo clero italiano era marcadamente iletrado, o que pode dissuadir suposições definitivas.

[ix] Em qualquer caso ele seria anátema para Niceia II (787), que não admite frouxidão. Fora que na metodologia heresiológica, o que é dito e escrito vale mais do que a intenção por trás, do contrário Nestório — e tantos outros — não seria amaldiçoado pelas suas palavras, apesar de jurar fidelidade à ortodoxia. Como veremos, Eugênio não chega sequer perto ao desejo expresso de Nestório de se entender como ortodoxo de boa fé, o que torna a régua que o condenará mais rígida que aquela aplicada aos heresiarcas. 

[x] A ideia de que existe alguma possibilidade remota de que Eugênio condenou ou discordou das atas ignora que temos outras formas de registro cruzado, ou de segunda mão, como o próprio Liber Pontificalis, que se mostraria extremamente propenso a exaltar o Papa como um resoluto defensor da fé diante da menor discordância ou insatisfação com as atas; quer dizer, o LB ativamente deturpou e exagerou a postura de outros Papas como paladinos da causa iconódula, porque ele deixaria de registrar a verdade em favor da causa quando o documento já estava comprometido em mentir por ela?

[xi] Este foi seu argumento para justificar como Honório seria sido condenado como herege monotelita mesmo, de acordo com ele, não sendo monotelita — o "brilhante" cardeal acusou de falsificação grega as cartas onde Honório ensinava monotelismo, assim como qualquer obra que divergisse o mínimo da doutrina romanista no século XVII —, mas apenas tolerando e não combatendo o monotelismo. Bom, como veremos, Eugênio fez muito mais do que suspostamente tolerar hereges remotos. Só o seu silêncio diante de um concíio sob sua benção que repudiou a iconodulia e que foi apresentado a ele, tanto por informe oral dos arautos quanto pelo documento físico das atas, é muito mais do que Belarmino cria como o suficiente para anatemizar um Papa: não precisamos sequer ler a carta para enquadrarmos Eugênio como um Papa herege.

[xii] Uma comparação que não é muito simétrica: Adriano, se sabia ou não que o Império condenava a iconodulia antes do recebimento das atas nicenas, escreveu uma gigantesca resposta aos gigantescos tomos de resposta carolíngia à Niceia II, inclusive ameaçando Carlos Magno de ser marcado como herege caso ele não se submetesse até à banalidades como "restaurar os domínios papais" tomados por Bizâncio no início da Iconomaquia e não-devolvidos mesmo após sua demanda na década de 780 — apesar dos iconoclastas terem sido difamados como ganaciosos, o assunto do retorno da jurisdição sobre a Ilíria mostrou que os iconódulas se portaram pareados com a ganancia que eles mesmos pintaram em seus inimigos. 

Foi necessário que Carlos Magno ignorasse Adriano — que pediu, em expediente diplomático, a literal invasão dos Bálcãs Ocidentais — e convocasse um outro concílio condenando a iconodulia, na frente de legados papais, assim como sua vinda à Itália em 800 d.C., para que Adriano tomasse o silêncio e até se tornasse empático: sem o consentimento do rei franco, Adriano coroou Carlos Magno como Imperador Romano, alegando sedevacância no trono bizantino porque a devota Irene que convocou Niceia II... era mulher — só mais um episódio de podridão e baixeza moral no histórico romanista. 

Eugênio optou pelo silêncio de imediato. Ele não condenou Paris, não moveu um dedo para disciplinar ou exortar Luís ou os bispos francos. Na verdade, não existe nele real defesa de ortodoxia iconódula em todo seu governo.

Um breve artigo do Dr. Noble tentou provar que Eugênio não era exatamente subserviente ao Império, mas suas conclusões são um tanto erráticas e a propria alegação de que ele repudiou o Sínodo de Paris, curiosamente, não possui referências primárias ou secundárias, não tem amparo nem no material confessional católico mais antigo e, no artigo em si, não foi sequer elaborado. 

[xiii] A Itália foi descrita nos séculos VIII e IX como um ambiente de ampla prática iconódula. É claro que as províncias de Sicília e Roma terem participado do Concílio Iconoclasta de Hieria (754), o apoio não-inexpressivo que as fontes dizem Cláudio de Turim recebeu após reagir contra a iconodulia popular com iconoclasmo e as referências à aniconistas italianos após o decreto imperial de Leão III dão provas que ela não era uniformemente iconódula; e se existiam aniconistas, também devem ter existido iconistas. 

Ainda assim, mesmo se esses 62 bispos não fossem todos iconódulas, com bastante segurança se pode dizer que a maioria deles mantinha uma posição alinhada com a papal ou se alinharia com a posição papal mesmo que ele condenasse a iconodulia. Temos exemplos contemporâneos onde minorias com opiniões próprias se calam diante da maioria: o Sínodo Laterano de 769, com bispos francos iconistas numa reunião iconódula; o Concílio de Niceia II (787), com o par de legados papais aceitando ter a Synodica de Adriano mutilada de tudo o que desagradava a proto-Igreja Greco Ortodoxa; e o Sínodo Carolíngio pós-Niceia II, onde os legados papais se calaram diante da negação de Niceia II e da Resposta de Adriano, que ameaçara enquadrar o rei e seus bispos como hereges. Para quaisquer fins, Eugênio II era um frouxo. 

[xiv] O Sínodo pede suspensão das atividades de bispos e padres analfabetos até que eles aprendessem a ler. Os poucos bispos e padres alfabetizados ainda assim não conheciam nada de Bíblia, de tratados teológicos ou de literatura — curiosamente, era sob a égide deles que a superstição de beijar, abraçar e se curvar diante de imagens acontecia, por pessoas igualmente ignorantes. 

[xv] Só que dessa vez, não eram os calvinistas do século XVI que teriam estudado escrita carolíngia (seja grafia, arte, trejeitos e envelhecimento de papel e encadernação) para criar um documento falso como se ele fosse de época : seriam os próprios carolíngios que fraudaram uma carta papal e entregaram essa mesma carta falsificada para o próprio Papa! Pelo menos é isto o que eles dizem nas entrelinhas, já que são covardes demais para pronunciar isso abertamente, embora seja definitivamente isto que defendam com essa tese.




DELL'ACQUA, Francesca. 

[x] Esposada por bispos islamizados, bispos feiticeiros e bispos satanistas. Criada por um feitiçeiro judeu e aparelhada pela comunidade judaica, todos na sua ânsia de destruir a Igreja de Cristo. Na construção iconódula, era impossível não só que a rejeição da iconodulia pudesse ter uma tradição contínua de alguns séculos até a controvérsia, mas que alguém pudesse "inventar" essa posição sem alguma relação consumada com os poderes das trevas. E diante de toda essa egrégora de poderes profanos, os Papas ou se acovardaram ou, em pontuais casos, escreveram cartas em que sequer excomungavam diretamente o imperador e os seus bispos, ou que desqualificavam a autoridade do Concílio de Hieria (754). O Papado real, ao invés de um leão valente, mais parecia uma hiena afugentada. 

[xi] Plataformas menos confiáveis como a Wikipédia afirmarão que Pascal condenou a iconoclastia em mais de uma ocasião. Mas, no domínio daqueles que estudam especificamente este período, essa informação não é corroborada: Pascal se limitou apenas à escrever uma carta, e nela sequer excomungou o imperador ou defendeu a iconodulia. Se a ausência de disciplina explicar-se-ia pelo medo, receio ou pragmatismo profano do Papa, como entender a falta de apologética iconódula?

Comentários

  1. E aí, Gaião, beleza? Cara, sou o Guilherme Constantino, do grupo "Arapuca", no Facebook. Não sei se tu se recorda.
    Excelente artigo e fiquei muito feliz em ver que você continua defendendo a nossa fé. Só fui saber desse seu blog após ver um debate sobre Sola Scriptura entre você e um católico, que foi realizado há mais de um ano atrás.
    Gostaria de manter maior contato contigo. Deus abençoe.

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    1. Lembro de vc sim amigo, me chama no messenger. Ou quer outro contato comigo?

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  2. É interessante notar que a busca pelos termos chave desse artigo como "Sínodo de Paris", "Concílio de Frankfurt", etc. Estranhamente não encontram informações por aí, só em artigos em pdf. É curioso isso, acho que a única citação foi ao Concílio de Frankfurt, isso de um site de documentos católicos, onde eles citam Nicéia II e nas notas de rodapé colocam que o Concílio de Frankfurt mentiu ao dizer que Niceia II dizia que a iconodulia às imagens dos Santos era semelhante às de Jesus e da Cruz. Curioso, não?

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    1. Aliás, eu vou mudar minha resposta, colocando aqui um link do site Apologética Católica que cita o Sínodo de Paris e também o Libri Carolini, embora me pareça um pouco embaraçado e tentando diminuir as implicações da carta, fazendo marabalismo sobre o assunto:

      https://apologistasdafecatolica.wordpress.com/2018/12/06/de-niceia-ii-a-sao-tomas-de-aquino-•a-emancipacao-da-imagem-religiosa-no-ocidente-•parte-ii/

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  3. Nesse artigo também tem confusão com as notas de rodapé, você se perdeu nas numéricas e sequer escreveu a última nota. Não sei se o texto terá revisão algum dia, mas fica aí a contribuição.

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