Inácio de Antioquia (m. 108/140) e o Aniconismo: uma contribuição inusitada para o debate sobre imagens?

Inácio de Antioquia não é o tipo de referência que vem à mente quando falamos de evidências patrísticas à respeito de aniconismo, iconismo ou iconodulismo. O autor a quem a Tradição Cristã tem identificado — não sem controvérsia [i] como discípulo direto do apóstolo João e o terceiro bispo de Antioquia tem atribuído à sua pena uma série de epístolas cuja autenticidade tem sido objeto de disputa por séculos e que ainda hoje está longe de produzir um consenso [ii]. Embora não seja de nosso interesse debater a autenticidade de parte ou de toda a coletânea de escritos atribuídos à Inácio, uma evidência encontrada na sua carta aos Romanos, cuja autenticidade tem sido geralmente aceita, nos obriga a abordá-lo.
 
O fato de Inácio falhar em aparecer nos testemunhos contra ou a favor dos ícones possui uma explicação bem razoável: nos escritos atribuídos a ele, nunca se pretendeu exatamente falar deste assunto. O objetivo destas epístolas é essencialmente disciplinar: combater heresias, fragmentações e cismas através do apelo à obediência quase-fanática à ordem hierárquica da igreja; isto é, diáconos, presbíteros e os novos bispos monárquicos, quando existirem [iii]
 
No entanto, como é bem sabido entre historiadores competentes [iv], mesmo documentos com objetivos específicos podem, ainda assim, revelar todo um emaranhado de detalhes sobre o autor ou o período histórico ao qual pertencem: mesmo que tais detalhes não tenham muita ligação com o propósito pelo qual um documento específico foi redigido. Embora isto seja mera constatação do óbvio, longe de ser uma invenção refinada de doutores da alta historiografia e teóricos de suas ciências-irmãs, esta obviedade ainda pode encontrar bastante resistência na mente mais obstinada de muitos militantes romanistas, justamente porque eles são capazes de compreender que estamos falando de algo que pode ser usado contra eles; o manifesto de confusão ou ceticismo, aqui, é a sua resposta defensiva natural. Nestes casos de maior resistência, precisaríamos explicitar que a compreensão proposta não destoa do seu equivalente romanista, como pode ser evidenciado pelo fato de que os próprios eles mesmos extraem desses documentos inacianos aquilo que se percebe como evidências da Transubstanciação, da Supremacia Papal, da Universalidade do Episcopado Monárquico etc.
 
Por mais indispostos que militantes romanistas possam ser contra qualquer análise documental divergente da sua compreensão dogmática [v], a minha demanda — que é completamente sensata para a metodologia histórica e para qualquer leigo em pleno exercício das suas faculdades mentais — é em princípio o mesmo entendimento que o Romanismo e o Melquitismo têm quando buscam extrair de documentos algum testemunho para seus ensinos particulares [vi].
 
Em resumo, o propósito da nossa análise parte do princípio de que, mesmo não falando explicitamente ou intencionalmente do assunto, os escritos de Inácio revelam todo um conjunto de crenças e posturas que, de fato, revelam o que o autor — e talvez outros de sua época — criam em relação ao uso ou feitura de representações pictórias pessoais ou, em petições mais elevadas, aquilo que a teologia iconódula identifica como ícones sacros.
 

A EPÍSTOLA DE INÁCIO AOS ROMANOS


"1. Nunca tiveste inveja de ninguém; ensinastes a outros. Quanto a mim, quero que permaneça firme o que ensinastes. 2. Para mim, peçam apenas a força interior e exterior, para que eu não só fale, mas também queira; para que eu não só me diga cristão, mas de fato seja encontrado como tal. Se eu de fato o sou, poderei também ser chamado como tal, e ser verdadeiramente fiel, quando não for mais visível para o mundo. 3. Nada do que é visível é bom. De fato, nosso Deus Jesus Cristo, estando agora com seu Pai, torna-se manifesto ainda mais. O cristianismo, ao ser odiado pelo mundo, mostra que não é obra de persuasão, mas de grandeza.” (Carta aos Romanos, Cap. 3) [1].
 
Inácio jamais teria se expressado desta forma se ele: 
 
a) fosse um defensor do uso e da feitura de ícones; 
b) estivesse imerso em um contexto em que os cristãos fossem defensores do uso e da feitura de ícones;
c) soubesse de algum uso e feitura cristã de ícones, impedindo que ele os contradissesse.

A narrativa iconódula e iconófila antiga — diga-se de passagem, quando Leão III ainda era um iconista, sua apologética anti-islâmica e anti-iconódula defendia a apostolicidade e a universalidade das imagens são incompatíveis com a retórica e pensamento do bispo antioqueno, logo, ele definitivamente não foi nem iconódula e nem iconista, podendo ser muito bem associado com um aniconismo bem rígido.
 
Talvez agora faça sentido o porquê de me delongar em uma detalhada explicação sobre razoabilidade da nossa análise: se Inácio fala claramente que nada do que é visível é bom, sendo fato indisputável que imagens são coisas visíveis e, num sentido conceitual, elas constituem a verdadeira epítome da coisa religiosa visível, então o pensamento de Inácio é particularmente antagônico à imagens religiosas; não só à elas, é claro, mas também à elas. E de certa forma, a necessidade lógica demanda que imagens encontrem até mesmo uma primazia nessa rejeição de bondade, junto de coisas como o esteticismo e a opulência das vestes e dos espaços de culto; impossível não pensar nos paralelos desta forma de pensar com a do próprio Jerônimo, que era um grande admirador do bispo de Antioquia.
 
A primeira objeção que poderia surgir é: "mas afirmar que nada do que é visível pode ser bom é um raciocínio extremamente burro". No entanto, burro ou não, esse pensamento vem de Inácio, não de um protestante moderno que poderia ter se expressado desta forma. Se um romanista pensa que ele se expressa de forma burra — e eu até poderia conceder que Inácio têm um punhado de raciocínios burros, o problema do romanista é com o santo que eles canonizaram, não conosco.

Na verdade, qualquer protestante que conhece a retórica católica sabe que, se esta fala estivesse na boca de Lutero ou de Calvino, não se perderia tempo para acusá-los formalmente de heresia gnóstica [vii], o que neste caso exigiria muito trabalho da parte dos protestantes para defendê-los. Mas, como o pensamento é de Santo Inácio, o mártir e testemunha da Igreja Católica, o que em qualquer outra circunstância impulsionaria a acusação de heresia, no caso dele é meramente seu platonismo. E diga-se de passagem, de fato é uma forma platonista de se pensar, o que não necessariamente abre margem para que romanistas pensem em descartar seu testemunho: o uso de filosofia grega é bastante recorrente nos teólogos patrísticos, que tipicamente ou viveram ou herdaram a experiência do governo greco-romano. Esse fenômeno é indiscutivelmente intrínseco à teologia escolástica. A retórica platônica abarca até mesmo Santo Agostinho, que eu costumo enquadrar como um dos doutores de pedestal que militantes romanistas tem bastante receio de se opor [viii]. Em resumo, o problema em si é o próprio Inácio, queiram os romanistas ou não.

Uma objeção que poderíamos facilmente prever, curiosamente, é organizada às custas da própria teologia iconódula: "Imagens são só imagens, não vemos nossas esculturas como deuses ou algo mais que simples objetos, como a foto de uma pessoa querida. A teologia católica está em harmonia com o santo na medida que imagens não são consideradas 'boas', apesar de muito úteis". É fácil prever tal objeção justamente porque romanistas modernos, por um misto que pode ser atribuído à desidratação da própria doutrina, desconhecimento da própria religião e cinismo — em alguns casos por apenas um dos três, noutros casos por uma união destes frequentemente apelam ou acreditam neste Pós-Iconodulismo. A realidade da doutrina romanista, porém, é incompatível com esta construção fictícia; e aqui eu me refiro especificamente à doutrina romanista por ter plena ciência que o iconodulismo melquita permanece muito mais conservado do que o seu equivalente latino, de forma tal objeção é tão incompatível com a doutrina do culto às imagens que para eles não é muito menos do que palpite herético.
 
Provar a incompatibilidade do discurso que desidrata a condição das imagens com a doutrina iconódula não demanda esforços imensos, podendo também ser feito de muitas formas. A primeira delas está imediatamente no nome: os iconódulas não chamam suas imagens pessoais de "ícones sacros" por acaso, ainda que a dessacralização moderna leve a crer que este "sacro" é meramente um adjetivo referente à sua dimensão religiosa. 
 
Poderíamos mostrar de forma claríssima este peso ao compararmos o iconismo transalpino com o iconodulismo que lhe foi contemporâneo na península itálica e no mundo grego, como o historiador Thomas Noble, especialista do assunto, descreveu da forma mais óbvia possível:

"A Iconofilia carolíngia não cruzou para a iconodulia [...]. Quando Theodulf encontrou argumentos sobre a santidade das imagens na acta nicena, ele se escandalizou, boquiaberto de tão horrorizado. Imagens eram meramente madeira e tinta. Uma imagem que é velha e defeituosa pode ser descartada. Apenas Deus é verdadeiramente santo. [...] Mas nenhuma imagem pode, sequer, ser santa. É divertido notar que quando o Opus Caroli de Theodulf foi descoberto e publicado por eruditos calvinistas no século XVI, a Igreja Católica respondeu o colocando no Índex de Livros Proibidos, alegando ser uma fraude recente designada para manchar Carlos Magno e o ensino tradicional católico sobre as Santas Imagens. Porque, é claro, as imagens no Ocidente adquiriram santidade nos séculos posteriores ao período carolíngio." [2].
 
A pergunta que necessariamente deveríamos fazer é: o romanista se identifica com a postura carolíngia que amaldiçoou o Sétimo Concílio Ecumênico (787) e sua crença na santidade das imagens ou com a postura magisterial que chamou o concílio e sua doutrina de sacrossantos? Eu costumo chamar este tipo de pergunta de encruzilhada da apostasia: ou o militante abandona seus palpites teológicos e assume a doutrina intragável da sua religião ou abandona a religião e mantêm seus palpites, embora a apostasia torne um tanto inútil manter essas posicionamentos subjetivistas. O que eles costumam fazer, por excelência, é se recusar a responder a pergunta e mascarar, da melhor forma possível, o impacto psicológico e espiritual de ser crer erroneamente e ser humilhado por mostrarem tal erro.
 
Imagens sacras são sacramentais, embora seja um pouco difícil de obter explicitamente essa confirmação de fontes romanistas modernas [ix]. Modelos específicos como o crucifixo e o escapulário são exaltados à uma condição de ainda maior poder e superioridade em relação às demais imagens e sacramentais [x]. Elas são usadas para expulsar demônios [xi], santificar espaços [xii], prover proteção e uma série de outros tantos benefícios que "fotos de pessoas queridas" e "meros objetos" não são capazes de fazer [xiii]. E diga-se de passagem, cultuar imagens sacras é essencial para que um fiel mantenha a sua salvação, sua recusa ou omissão sendo sinal certo de condenação eterna [xiv]. Mesmo que não consideremos aqui o sacramento de presença, por razão de brevidade, como pode um romanista afirmar que suas imagens sacras são meras imagens e que por isso a suposta indiferença ou neutralidade delas não contradiz Inácio quando este afirma que "nada do que é visível é bom"?
 
Curiosamente, a postura de desidratação acaba correspondendo à posição dos próprios iconoclastas, conforme a edição melquita da apologética iconódula de Teodoro Estudita constata:

"O ponto de ataque óbvio aos ícones foi (e ainda é) o segundo mandamento, proibindo imagens de escultura [...]. Eles também defendiam que a superioridade do espírito sobre a matéria tornava inapropriado usar imagens materiais no culto espiritual. Seu desdém pela matéria sugere que eles foram bastante influenciados tanto pelo neoplatonismo pagão quanto pela tradição hebraica." [3].
 
É ridiculamente óbvio o quanto a posição inaciana se identifica com a posição aniconista [xv] — inclusive dos aniconistas bizantinos da Iconomaquia — e o quanto ela é incompatível com a posição iconódula, ao ponto da desidratação promovida por certos romanistas esbarrar na posição iconoclasta que eles supostamente deveriam repudiar. 

Se ainda for necessário substanciar mais provas de que a posição inaciana é incompatível com a doutrina iconódula, podemos trazer à tona o Concílio de Niceia II (787) e os documentos em defesa dos ícones.
 
Do Primeiro Tratado em Defesa de Imagens de João ibn Mansur, o Damasceno:

"Eu não cessarei de honrar esta matéria que trabalha para a minha salvação. Eu a venero, embora não como Deus. Como Deus pode nascer de coisas sem vida? E se o corpo de Deus é Deus por união, é imutável. A natureza de Deus permanece a mesma de antes, a carne criada no tempo é vivificada por uma alma lógica e racional. Além disso, honro toda matéria, e a venero. Por meio dela, preenchida, por assim dizer, com um poder e graça divinos, minha salvação veio até mim. Não era a madeira da Cruz, triplamente bem-aventurada e triplamente abençoada, matéria? Não era o santo monte do Calvário matéria? O que dizer da rocha vivificante, o Santo Sepulcro, a fonte de nossa ressurreição: não era matéria? Não são os santíssimos livros dos Evangelhos matéria? Não é matéria a mesa bendita que nos dá o Pão da Vida? Não são o ouro e a prata matéria, dos quais são feitos as cruzes, o altar e os cálices? E além de todas estas coisas, não é o corpo e o sangue do Nosso Senhor matéria? Ou se afastem da veneração e o culto dado à todas estas coisas ou se submetam à tradição da Igreja no culto das imagens [...] Não despreze a matéria, pois ela não é desprezível. Nada que Deus fez é. Isto é heresia maniqueísta." [4].

E ainda: "Veja aqui a glorificação da matéria que você tornou ingloriosa." e "Nós o proclamamos pelos nossos sentidos em todos os lados, e santificamos o mais nobre, que é a visão" [5].
 
Existe uma série de pontuações à fazer sobre a apologia de Damasceno — além do turbilhão de esquizofrenia teológica e argumentos ruins que os próprios romanistas atuais não usariam de tão vergonhosos. A primeira delas é que a acusação de heresia maniqueísta acerta Inácio em cheio, como prevíamos que aconteceria contra qualquer pessoa que não possuísse o respeito apriorístico dos cultistas de imagem. Considerando todos os argumentos em defesa do valor e bondade intrínseca da matéria, que Inácio sumariamente descarta, fica ridiculamente evidente que Ibn Mansur e Inácio são de espíritos distintos e divergentes. Se for preciso sublinhar a obviedade: "nada do que é visível é bom" contra "não cessarei de honrar esta matéria que trabalha para minha salvação", "honro e venero toda matéria", "a matéria não é desprezível porque Deus a fez", e "santificamos a visão através das imagens".
 
A segunda delas é que, além de identificar erroneamente os valores a serem atribuídos aos lugares (e. g. a blasfêmia de dizer que o túmulo de Jesus, e não Jesus em si e somente, é a fonte da nossa salvação), o Damasceno parece acidentalmente ter caído em Nestorianismo: cultuar o corpo ou partes do corpo de Cristo, sem sua união intrínseca com seu espírito, incorre em heresia, razão pela qual a Igreja Melquita repudia a própria devoção ao Sagrado Coração, como disserta o padre Keller:

"São Atanásio de Alexandria apontou o erro de adorar o corpo de Cristo de uma maneira separada, com estas palavras: "Não adoramos uma coisa criada, mas o Mestre das coisas criadas, o Verbo de Deus feito carne. Embora a própria carne, considerada separadamente, seja parte das coisas criadas, ainda assim tornou-se o corpo de Deus. Nós não adoramos esse corpo depois de o separarmos do Verbo. Da mesma forma, não separamos o Verbo do corpo quando queremos adorá-Lo. Mas sabendo que 'o Verbo foi feito carne', reconhecemos o Verbo existente na carne como Deus". [6].
 
O comentário de uma editora romanista aos trabalhos de Damasceno, demonstrando sua clara antítese ao Protestantismo, constata:
 
"Quais são as consequências de se rejeitar as imagens prescritas por Deus? [...] Somos constituídos de tal forma que imagens são uma mandatoriedade: nossas mentes não conseguem atingir o trono de Deus sem a ajuda de coisas corpóreas. Até o Agnosticismo constatou isso. 
[...]
Todos os fiéis são unos em seu desejo de chegar à Deus, a questão está no detalhe. Qual o caminho mais curto? São João Damasceno fala com a Igreja quando ele diz que é através da glorificação da matéria na Pessoa do Verbo Eterno. Ou deem à matéria seu lugar apropriado ou retirem aquilo que o próprio Senhor exaltou" [7].
 
Quem ainda precisa de mais dissertações sobre a incompatibilidade dos pensamentos de Inácio e de Ibn Mansur? Do desprezo das coisas visíveis à exaltação da matéria, do século segundo para o oitavo, quem falharia em perceber essa apostasia?
 
Todavia, um último comentário ainda deve ser feito, para privar romanistas de desidratarem a autoridade do doutor iconódula: essa incompatibilidade de espíritos também é aplicável a Niceia II (787), como se pode ver:

"Recebamos as tradições, honremos a regra ancestral da Igreja, não sejamos escrupulosamente inquisidores em algo tão santo, tão pio; que não se intrometam com as ordenanças ancestrais [...]. Assim, portanto, todos os que estão sem esta tradição, da qual todos os que nasceram legitimamente na Igreja Católica são participantes, são bastardos e não filhos. Portanto, nós sentimos que este [ato de] colocar as santas imagens na Igreja é bom e correto [...] e que, portanto, por conta do valor do seu protótipo, nós somos obrigados a saudar, abraçar e conferir toda honra adequada sobre a imagem." (Sessão Sexta) [8].

 Como pode ser bom e correto colocar imagens em templos se, de acordo com Inácio, imagens (como epítomes de coisas visíveis) não são boas? Claramente existe uma contradição entre o bispo e o sínodo.

"Todas as coisas que de tempos em tempos os nossos santos padres construíram sobre a fundação dos Profetas e Apóstolos nós recebemos; mas tudo que é de uma descrição contrária nós rejeitamos como odiosa e de nome hostil" (Sessão Sexta) [9].
 
Aqui um fenômeno curioso: se Santo Inácio de Antioquia é um dos santos padres e ele trata de coisas visíveis como não-boas, como este sínodo, ao invés de repudiar a iconodulia e manter-se no testemunho aniconista dos "santos padres", se coloca completamente contra Inácio? Um sinal claro de que o Espírito Santo não teve parte com as heresias deste pseudo-Concílio, cujos erros se amontoam como dunas de areia.


A DIVERGÊNCIA NAS TRADUÇÕES


A passagem de Romanos 3 é tão pesada, tão objetiva e tão forte que, ao invés de debaterem o significado da afirmação do santo, a maioria dos romanistas com quem eu discuti esta passagem optou por outra estratégia: acusar a minha tradução de ruim — os mais educados, ao menos — e eles mesmos traziam suas próprias versões. E diga-se de passagem, é a estratégia mais inteligente e relativamente mais honesta que eles têm ao seu dispor.

Ocorre, porém, que a "minha versão" é na verdade a tradução publicada pela Editora Paulus, que é católica-romana e insuspeita à inclinações protestantes. Mas os opositores não checaram isso, muito embora a Paulus seja a opção mais óbvia e acessível para ser consultada, especialmente por causa da pirataria. Que traduções diferentes existam sem necessariamente imputar desonestidade no tradutor pode ser razoável na medida que a própria tradição manuscrita de Inácio é um tanto quanto controversa; curiosamente, este será a primeira vez que o testemunho de Inácio será posto em cheque pelos romanistas, apenas porque isto é uma barganha pequena quando se tem o dogma em risco.
 
O que é curioso, contudo, é que a tradução da Paulus corresponde muito adequadamente à tradição manuscrita siríaca — o padre Migne, por ter sua obra antecedente à tal descoberta documental, faz uso apenas dos manuscritos latinos e gregos. Defendida por alguns como "a verdadeira versão das epístolas de Inácio", essa tradição manuscrita siríaca serve ao menos para determinar a qualidade da tradição manuscrita usada pela Paulus. Convenientemente para nós, a tradução é dada por uma outra plataforma romanista:

"Vós nunca invejastes nenhum homem. Vós haveis ensinado outros. Rezai apenas para que me seja dada força de dentro e de fora, para que eu possa não apenas falar, mas também estar disposto, e para que eu não seja meramente chamado de cristão, mas também possa ser considerado [um]; porque se eu for considerado [assim], então também poderei ser chamado [assim]. Então [de fato] serei fiel, quando não for mais visto no mundo. Pois não há nada visível que seja bom. O trabalho não é [uma questão] de persuasão; mas o Cristianismo é grande quando o mundo o odeia" [10].
 
A sentença que confirma o aniconismo permanece, permitindo que nós possamos arrolar Inácio — ou Pseudo-Inácio — em uma extensa lista de Pais da Igreja e escritores antigos que testemunham unanimemente por mais de 350 anos o caráter doutrinariamente aniconista da Igreja Antiga.


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS:

 
[1] INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta aos Romanos, Cap. 3. In: Patrística - Clemente Romano | Inácio de Antioquia | Policarpo de Esmirna | O pastor de Hermas | Carta de Barnabé | Pápias | Didaqué - Vol. 1. São Paulo: Editora Paulus, 1995, 2ed, p. 130.

[2] NOBLE, Thomas. Images, Iconoclasm and the Carolingians. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2009.

[3] ROUTH, Catharine P. On the Holy Icons. Nova Iorque: St. Vladimir's Seminary Press, 1981, p. 9.

[4] JOÃO DAMASCENO, Oratio Prima. In: Apologia of St. John of Damascus Against those who Decry Holy Images, trad. ALLIES, Mary H. Londres: Thomas Baker, 1898,  p. 6

[5] Ibid, p. 7.

[6] KELLER, Aidan. O erro da devoção ao Sagrado Coração, trad. PEDROZA, Tony. Skemmata, 2017. Disponível em: <http://skemmata.blogspot.com/2017/12/o-erro-da-devocao-ao-sagrado-coracao.html>. Acesso em 29 novembro de 2021.

[7] AETERNA PRESS. Saint John of Damascus Collection: 4 Books, p. 380-381.

[8] MENDHAM, John. The Seventh General Council, the Second Council of Nicea, in which the worship of images was established: with copious notes from "Caroline Books", compiled by the order of Charlemagne for its confutation. Londres: 1850. p. 431.

[9] Ibid, p. 407.

[10] CATHOLIC CULTURE. Syriac Versions of the Epistles of  Ignatius of Antioch. Disponível em: <https://www.catholicculture.org/culture/library/view.cfm?id=3837&fbclid=IwAR3puwM4Yt3PKPfu9kH8Zdex9NF1SyDF3R23ndUhTYS1SqjsqP2vJAcAbPw>. Acesso em 29 de novembro de 2021.
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NOTAS: 

 
[i] Apesar da biografia repleta de detalhes, alguns desconhecidos até mesmo para o público moderno que julga conhecê-la, a cadeia de transmissão da Tradição Cristã contrasta com uma severa escassez de fontes de primeira e até de segunda mão sobre Inácio. 
 
Não existe evidência convincente que prove ou confirme que Inácio tenha sido discípulo do apóstolo João, ou que ele tenha sido ordenado por Pedro ou por Paulo (mesmo as fontes tardias se contradizem), ou até mesmo que ele possuísse algum contato direto ou indireto com os apóstolos e outras figuras neotestamentárias. Antes que algum leitor me acuse de liberalismo teológico, explicarei em detalhes: se pegarmos as epístolas que passaram pelo filtro anti-falsificação do próprio Romanismo, em nenhuma delas o autor menciona ou confirma qualquer uma destas coisas; isto, por sinal, pode inclusive ser utilizado para defender a autenticidade desta coleção de cartas. 
 
As epístolas que são definitivamente consideradas falsas por todos, por outro lado, contêm abundante troca de correspondências com o apóstolo João e a Virgem Maria. É possível — embora não se possa dizer que é necessariamente o caso — que a atual crença nestas conexões apostólicas tenham sido interpoladas na Tradição Cristã pela ação desses escritos falsificados. Embora também seja possível que os escritos falsificados tivessem sido elaborados em um contexto onde a ideia de networking apostólico já existisse, é indubitável que elas foram, ou seriam, um grande reforço para esta concepção; sendo ela inexistente, coexistente ou a única existente.

Além de não denunciar conexão com os apóstolos, as cartas filtradas de Inácio não são datadas, por mais que apologistas romanistas tentem fazer parecer que sua cronologia é incontroversa. A realidade, porém, é que as datações das cartas e da morte de Inácio — ambas são bem próximas — são feitas primariamente a partir de outros documentos, mais tardios e que não são de grande credibilidade. A atual forma da Tradição Cristã sobre Inácio deve ser creditada ao bispo Eusébio de Cesaréia, no século IV; o único outro registro positivo e mais antigo para Inácio vêm de um comentário rápido e controverso de Origenes, no século III (c. 234-240), que só é preservado na tradução latina de Jerônimo (séc. IV). 

É de Eusébio que temos a datação da morte de Inácio no governo de Trajano (r. 98-117), daí gerando uma faixa temporal para a datação das cartas. Apologistas romanistas costumam empurrar a cronologia das cartas o mais cedo possível para reforçar a apostolicidade do que eles pensam ser doutrinas romanistas em Inácio, buscando intimidar a acusação protestante de uma possível corrupção doutrinária.
 
Contudo, Eusébio sofre do mesmo mal que muitos historiadores de seu tempo: raramente citar suas fontes, se é que alguma está sendo usada. O bispo de Cesaréia ainda tem em suas costas a má fama de ser um historiador pouco confiável e pouco profissional na forma como transmite suas informações; especialmente neste tipo de assunto, onde ele costuma empurrar a cronologia dos antigos líderes da Igreja tão próximo dos apóstolos quanto possível, por razões ideológicas — fortalecer a ideia de que os bispos católicos/ortodoxos de seu tempo eram sucessores legítimos dos apóstolos. Ainda que a fonte de Eusébio fosse o cronista Sextus Julius Africanus (início do séc. III), tanto ele quanto Origenes são tardios demais para providenciar uma lista episcopal antioquena realmente incontroversa; e mais especialmente, a época onde Inácio exerceu episcopado monárquico — curiosamente, o catalão Josep Rius-Camps defende que todas as menções ao episcopado monárquico nos escritos inacianos são interpolações ou falsificações tardias, tornando as datações ainda mais confusas.
 
Em qual época podemos datar a vida e as obras de Inácio, então? Eu estou firmemente convencido, junto com outros historiadores modernos, de que Inácio morreu ou entre 135 e 140 d.C. (Richard Pervo) ou na década de 140 d.C. (Timothy Barnes). Que ele não deve ter escrito muito depois disso pode ser reforçado pelo fato de que, já que o episcopado monárquico só surge em Roma na segunda metade do século II, é coerente que a carta aos Romanos anteceda o surgimento deste regime de governo.

[ii]

[iii] 
 
[iv]

[v]
 
 

Comentários

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