O Magistério Católico revogou a proibição apostólica de sangue e carne sufocada (Atos 15)?

Sabe quando a carne está “sangrando”? Bem, não é sangue... - Mega Curioso


Protestantes frequentemente apontam como diversas doutrinas e práticas papistas contradizem o estabelecido na própria Bíblia. Casos como a proibição do casamento clerical, contradizendo sua prescrição pelo apóstolo Paulo, são utilizados para provar que o Magistério Romano não é fiel à Regra de Fé, não podendo então constituir algo melhor que uma instituição heterodoxa, provada mentirosa nas suas pretensões.
 
Embora entre os próprios romanistas não exista uma posição coesa sobre se o Magistério pode contradizer ou anular um ensino ou decreto apostólico, isso não necessariamente impede apologistas rasteiros de tentar provar as inovações da sua religião às custas das Sagradas Escrituras. Recentemente, um apologista usou o seguinte enxerto para refutar o Protestantismo:

"Agora repare bem o leitor à lógica protestante. Os Apóstolos proibiram aos cristãos comer do sangue e das carnes sufocadas (Atos XV-29). Tinham os cristãos que fazer como faziam os judeus: matar o animal, fazer escorrer todo o sangue para depois comer. NA BÍBLIA NÃO CONSTA A REVOGAÇÃO DESTE DECRETO. Mais tarde a lgreja, com o seu poder de ligar e desligar, uma vez que não havia mais as razões pelas quais esta proibição tinha sido feita, resolveu revogar tal medida disciplinar imposta pelos Apóstolos. E no entanto os protestantes, que acham que a Igreja tem que se limitar a fazer exclusivamente o que está na Bíblia, que só admitem aquilo que se vê em letra de fôrma no Livro Sagrado, comem a carne dos animais com o sangue, comem as carnes sufocadas, sem nenhum remorso, autorizados exclusivamente pela Igreja!

E durma-se com um barulho destes!" [1].

A intenção era bem óbvia: invalidar o argumento de que o Romanismo pode ser refutado mostrando contradições do Romanismo com a Bíblia. Mais do que isto: mostraria que os protestantes secretamente seguem uma "autorização" da seita papal em seus hábitos alimentares, pelo menos na cabeça de quem concorda com o enxerto. At face value, um leigo até poderia pensar que isso parece um argumento poderoso contra o Protestantismo, mas é bem o contrário. 

Existe um problema que qualquer pessoa "iniciada" em uma faculdade de História — ou educada em metodologia básica no ensino universitário ou simplesmente dotada de bom-senso — nota: a alegação de que a Igreja usou seu poder magisterial para mudar o decreto apostólico não possui qualquer fonte ou referenciação. Você precisa acreditar que a Igreja mudou o decreto de Atos dos Apóstolos, porque sim! O argumento não se sustenta sem que você acredite credulamente nisso. 

Além de não citar fonte, o autor também não cita qual concílio ou qual epístola papal revogou o decreto apostólico. Também não cita uma data ou período, embora pareça sugerir pela dissertação algo só estabelecido no período pós-niceno — a partir do século IV — tornando a não-referenciação documental uma falta ainda mais severa. No caso de documentos papais, à rigor, precisaríamos de algo posterior à época em que o Papa realmente passou a ser reconhecido — pelo menos regionalmente — por possuir tal autoridade, viabilizando uma nova οικονομία de consumo de carne e sangue como o autor afirma; não antes da "Reforma" Gregoriana no século XI, e que ainda assim impossibilitaria o caráter universal da mudança, já que estamos falando de algo reconhecido somente na Europa Ocidental, e com ressalvas.

Datas, nomes, qualquer coisa seria um paleativo para a mediocridade do autor ou pelo menos uma isca para fazer os protestantes perderem tempo durante o fact checking com uma pista falsa, como costumeiramente se faz, mas nem isso. Em síntese, o argumento é todo um castelo de areia.

Mas eu queria confirmar que o autor de fato estava fazendo alegações extraordinárias sem fontes, o que seria difícil de averiguar já que o apologista que divulgou o enxerto se recusava a dar os nomes do autor e da obra, provavelmente prevendo os riscos de tornar conhecidos tais dados.

Eu já supunha se tratar de uma obra apologética brasileira do século passado, provavelmente de Leonel Franca ou de outro falsário consagrado, mas precisava de informações. Após insistir por 4 horas inteiras, cortando quaisquer tentativas de tergiversão do apologista, consegui a confissão: "Legítima Interpretação da Bíblia", de Lúcio Navarro. O título só não é mais pretensioso que o comentário dele sobre o livro: "é uma obra magistral", apesar de eu e muitos outros nunca termos ouvido falar dela. 

 E de fato, a nossa obra magistral não cita fontes, você tem que acreditar no que o autor diz. E aqui têm um ponto importante: além do Navarro não citar fontes e nem o episódio em questão, nenhum apologista católico sabe, de fato, que concílio ou documento papal efetuou essa revogação. Basicamente, os católicos não conhecem sua Tradição Infalível para dizer quando ela ocorreu, embora muitos digam que ela ocorreu (pelo poder da fé). A cadeia de transmissão oral inerrante, divinamente assistida, se perdeu, e a Igreja hoje não sabe em nenhum lugar do mundo o que uma mente iluminada de Pernambuco sabia em 1958 (nota: isto não é um sarcarmo racista). Porque católicos comem carne com sangue? Ninguém sabe, mas basta dizer com confiança que o Magistério decidiu permitir com os poderes mágicos da chaves e isso é um placebo eficiente para encerrar toda a questão.

Navarro não citou fontes porque ele não as tem, é simplesmente uma alegação temerária que frauda wishfull thinking como fato, ou seja, ele transmite como realidade histórica aquilo que ele acha que deve ter acontecido no passado, sem obviamente alertar o seu público — que está geralmente propenso a aceitar o que ele diz de forma acrítica — do recurso. É uma desonestidade bem popular na apologética desses hereges (vide a Disputatio de Sérgio o Estilita em favor do culto às relíquias, no século oitavo, contra um judeu), e que também comprova a notória má-fé de Lúcio Navarro; mas convenhamos, discutir se isso é fruto ou causa da sua missão é, de acordo com o ditado, tão fútil quanto discutir se o ovo veio antes da galinha.

O fato das Regras de Fé da Igreja Romana serem um sistema patético e folclórico só é piorado pelo cinismo do apologista que certamente representa a realidade de muitos militantes e fiéis católicos: "o padre não disse que mudou? Se ele disse é verídico." (sic). 

É claro que quando sou eu, um protestante, mostrando que o Papa Adriano I condenou estátuas, não basta eu citar fontes, porqueA eu provavelmente fui desonesto na citação; também não basta que eu mostre no livro que eu usei a passagem condenatória, porque o autor não é católico e pode ter adulterado a carta; também não basta citar o parecer de jesuítas e autores romanistas da citação, porque ou são distorções dos pios especialistas ou eles são heterodoxos por discordarem da doutrina romanista; também não basta citar a fonte original em latim, porque o romanista vai alegar desconhecer completamente o idioma; não basta traduzir a fonte do latim para o português, porque ele não confia na minha tradução; também não basta pedir para ele traduzir palavra por palavra do latim, porque ele não tem interesse ou tempo para fazê-lo. Em resumo: sempre existe uma desculpa para desconsiderar o que você diz e cita, mas qualquer porco do lado deles é tomado como arauto da verdade. E Navarro aqui faz realmente uma revelação: cita um episódio que ninguém sabe, que foi perdido na história; uma revelação que não perde em nada para a suposta iluminação dos Papas ao declarar doutrinas.



A SOLUÇÃO DE NAVARRO É NA VERDADE UM PROBLEMA


A apologética de Navarro se torna mais o veneno do que o remédio: ela mostra que a Tradição se perde, que documentos magisteriais ou o ensino oral ganha, perde ou se transforma com uma naturalidade abominável. E é claro, se não houve revogação, os fiéis romanos estão obviamente condenados pela própria bíblia, e a religião papista sucumbe. São essas as consequências de não se atender às premissas de Navarro, doa a quem doer.

E embora a solução óbvia para a maioria dos papistas seja ejetar Lúcio Navarro como um palpiteiro fétido, o que ele realmente é, isto seria dificultado ou até impossibilitado pelo fato da sua obra possuir todas as aprovações da censura eclesiástica. É claro que eu não espero muito de romanistas que relativizam concílios, decretos e documentos papais, mas para além das consequências óbvias da desonestidade intelectual destes, a aprovação do censor pe. Daniel Lima e do Arcebispo de Olinda e Recife provam que Navarro não devaneia sozinho, mas que essa e outras coisas são concordadas por outros, e pior, estão de acordo com a doutrina católica; ou melhor, ela é verdadeiramente a Legítima Interpretação da Bíblia. E caso assim não a reconhecessemos, mostraria de forma bem clara o quão convencional é a Livre Interpretação da Bíblia entre romanistas; não o Livre Exame, protestante, mas exatamente a Livre Interpretação que os papistas nos acusam de fazer, falaciosamente. E podemos dizer: a interpretação dada se equipara ao pior conteúdo das piores igrejas neopentecostais.

Quando o enxerto foi usado como argumento contra o Protestantismo, os mesmos apologistas que acusam nossa religião de ser "uma torre de Babel" estavam lá fornecendo meios de salvar a obra romanista. Ironicamente, defendendo coisas auto-excludentes e que contradiziam o próprio Navarro, mas nenhum deles notou — ou quis admitir ao ser pressionado com as contradições — que tais posições não eram compatíveis com a interpretação de Navarro: por exemplo, de que o próprio apóstolo Paulo revogou ou contradisse o Concílio de Atos 15 em Coríntios 10:25-31. Além das consequências que ameaçam a consistência de ambas as passagens bíblicas, agredidas tão gratuitamente pela tentativa de resgate, supor que Paulo revogou o Concílio em Atos é uma alegação clara de que não foi o Magistério da Igreja, depois, quem revogou tal medida, mas os próprios apóstolos, ou um dos apóstolos.

   


A EXEGESE DEFEITUOSA E O USO LÁSTIMAVEL DO MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO POR NAVARRO

 

É claro que fica pior. A exegese do autor para essa interpretação peculiar é dada:

"Os antigos, mesmo os gentios, tinham horror a este ato de comer o sangue; parecia-lhes isto uma demonstração de selvageria, à imitação dos cães que lambem o sangue dos animais.

Depois, com o tempo, feita a verdadeira fusão entre os judeus e os gentios no seio da Igreja, desaparecidas aquelas idéias antigas, esta proibição caiu em desuso, uma vez que cessava o motivo pelo qual havia sido feita, isto é, evitar a aversão mútua entre gentios e judeus. É interessante notar neste ponto como os protestantes, que só admitem aquilo que está na Bíblia, deveriam ainda hoje obedecer a esta lei e no entanto comem a carne dos animais sufocados, como é a carne de boi que se vende nos nossos açougues, e comem o sangue dos animais. Deveriam fazer como fazem ainda hoje os judeus: matar as galinhas por um processo todo especial e deixar escorrer todo o seu sangue; pois a Bíblia não fala na revogação desta lei, revogação que foi feita depois pela autoridade da Igreja, pelos sucessores dos Apóstolos, quando esta lei não foi mais julgada necessária" [2]. 

 

É muito difícil não reparar no quanto essa exegese é completamente inovadora, sem precedentes até pro Romanismo. A obra do Lúcio Navarro, em si, poderia ser renomeada de "Legítima Interpretação da Bíblia" para "Livre Interpretação da Bíblia", já que essas exegeses absurdas não poderiam ser vistas nem em documentos da Igreja. 

 O erro que mais salta aos olhos é alegação de que a proibição foi dada porque os gentios abominavam o consumo de sangue animal. Isso é uma leitura extremamente ignorante, já que o próprio Concílio lida com coisas que judeus e gentios tinham em divergência de histórico cultural. Se de fato os pagãos abominassem o consumo de sangue, como os judeus abominavam, não faria muito sentido proibir isso e posteriormente abolir por conta da "perfeita fusão entre judeus e gentios". Se o próprio Navarro diz que ambos tinham isso em comum, essa fusão é simplesmente irrelevante para a abolição da prática. 

 Eu poderia citar diversas exegeses protestantes sobre o assunto, mas no geral elas seriam ignoradas pelo princípio de Negação Plausível: são hereges, logo tudo o que eles falam é descartável. E é justamente por isso que citarei um apologista americano de maior educação, Gary Michuta:


"Os antigos associavam o sangue com a vida. Afinal de contas, se um animal perde seu sangue, ele morre. Esta associação entre sangue e vida também pode ser vista em Levítico, onde Deus diz: "Já que a vida de todo corpo vivo está no seu sangue, Eu direi aos Israelitas: não tomarás o sangue de qualquer carne. Já que a vida de qualquer corpo vivo é o seu sangue, qualquer um que tomar parte nela será separado" (Dt. 12:23)

Se levarmos essa associação mais adiante, podemos ver que beber o sangue ou comer a carne com o sangue significaria uma comunicação ou participação na vida da vítima. Isto parece ser a lógica por trás de muitos sacrificios pagãos e rituais. Ao beber o sangue de um touro, por exemplo, a pessoa ganha o poder ou a força de um touro. O que é pior, pagão frequentemente cultuavam deuses animais. Logo, beber o sangue de animais ou ao comer carne com sangue não era algo inocente, era uma tentativa de entrar em comunhão com estes deuses.

Você pode ver porque Deus estava tão preocupado com esta prática. De fato, as instruções do Antigo Testamento contra beber sangue frequentemente aparecem ao lado de outras proibições contra práticas idolátricas (e.g. Levítico 17:7-10, 19:26-28, etc). Ao estigmatizar o beber do sangue, Deus fez esta forma de idolatria menos atrativa.

[...]

Terceiro, a proibição contra beber sangue parece estar ligada às práticas pagãs que procuravam participar na vida dos animais e demônios (1 Cor 10:19-21). Isto, é claro, é errado. É idolatria." [3]

 

Quem será que tem a "Legítima Interpretação da Bíblia"? Se existe uma "interpretação legítima", isto é, se o Magistério interpreta de fato essa passagem, porque ambas as interpretações são contraditórias? Porque o sr. Michuta não conhece o extraordinário uso das chaves que o Magistério utilizou para revogar o decreto apostólico?

É claro que o verdadeiro usuário da livre interpretação aqui é Navarro: tanto a culinária europeia quanto os ritos cúlticos pagãos tinham consumo de sangue animal. Ao apologista brasileiro cabe ridicularizá-lo como ele faz no seu livro:

 

"Chamamos aqui Protestantes todos aqueles que admitem a autoridade da Bíblia como livro sagrado (embora discutam sobre o verdadeiro significado de sua inspiração) e adotam a "teoria do livre exame". Desde que há o livre exame e cada um interpreta a Bíblia como bem lhe parece, já não se pode distinguir por esta ou por aquela doutrina quem é protestante e quem o deixa de ser, pois assim já se estaria negando ao protestante a liberdade na interpretação da sua Bíblia" [4].


Por mais irônico que possa ser, o sr. Lúcio Barreto se provou ser exatamente aquilo que abomina: um "protestante".


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS:

[1] NAVARRO, Lúcio. Legítima Interpretação da Bíblia. Recife: Campanha de Instrusão Religiosa Brasil-Portugal, 1958. Seção 368, p. 528.
 
[2] Ibid, Seção 117, p. 149.

[3] MICHUTA, Gary. Why did the Old Covenant forbid blood? Detroit Catholic, 24 de julho de 2014. Disponível em: <https://detroitcatholic.com/news/gary-michuta/why-did-the-old-covenant-forbid-blood>. Acesso em 13 de julho de 2021.

[4] NAVARRO, ibid. Seção 224, p. 318.
 

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