Os Erros de Gerhard e do Instituto Areté: muito mais que imagens

 

  Afresco em uma igreja dinamarquesa do século XIII, preservada da degradação do tempo e da umidade por conta da ação iconoclasta luterana no local, no século XVI.  

 

Meses atrás, um luterano conhecido como Victor Gomes escreveu um texto em favor de imagens no site dele, o Instituto Areté. O problema é: nem os fatos puros afirmam isso e nem os estudiosos, seculares ou apologéticos, o fazem. Até a segunda metade do século IV, toda a Patrística é aniconista. A partir daí, Por uma série de razões, eu interrompi minha pesquisa para respondê-lo. 

 

Existe um adendo importante quanto ao texto do Instituto: a formatação um pouco confusa pode persuadir o leitor mais desatento a tomar como única duas exposições aparentemente identicas no corpo do texto: a de Gerhard, no Loci Theologici, e a do Gomes, na parte final. Distingui-las será importante porque o enxerto da defesa de Gerhard pode não conter as mesmas coisas que o Victor diz, sendo importante ter isso em mente para não creditar certos comentários do autor ao pensamento do escolástico. Dito isto, vamos ao texto.


UM PROBLEMA DESNECESSÁRIO E JÁ RESOLVIDO, OU COMO ATRASAR UM DEBATE SIMPLES

 

Apesar do Victor estar ciente dos meus artigos, ele aparentemente resolveu ignorá-los ou se recusando a lê-los ou fingindo que o conteúdo exposto neles simplesmente não existia. O fundamento principal do texto do Gerhard é um compêndio patrístico aparentemente extenso e iconófilo. Isso é piorado pela própria declaração do autor: "os luteranos seguem um consenso da Igreja Antiga". Então, a menos que consenso tenha adquirido um novo significado, o autor quer dizer que toda a Igreja Antiga era a favor de ícones ou, pelo menos, a maioria deles eram. O problema é: nem os fatos puros afirmam isso e nem os estudiosos, seculares ou apologéticos, o fazem.

Até a segunda metade do século IV, toda a Patrística é aniconista. A partir daí, por fatores pouco célebres, surgem os primeiros Pais iconófilos. No século VII surgem os primeiros Pais iconódulas. Nossa pesquisa dispôs os autores da seguinte forma:



Autores com posturas claramente aniconistas:


1. Inácio de Antioquia (c. 140)
2. Justino de Roma (100-165)
3. Irineu de Lião (130-202)
4. Atenágoras de Atenas (133-190);
5. Clemente de Alexandria (150-215);
6. Marco Minúcio Félix (150-260);
7. Tertuliano de Cartago (160-220)
8. Melito de Sardes (m. 180)
9. Origenes (185-254);
10. Arnóbio de Sica (255-330)
11. Cipriano de Cartago (r. 249-258);
12. Lactâncio (240-320);
13. Eusébio de Cesareia (265-339);
14. Ósio de Córdoba (256-357);
15. Epifânio de Salamina (365-403);
16. Evágrio do Ponto (345-399);
17. Agostinho de Hipona (r. 391-430);
18. Anfilóquio de Icônio (r. 373-403);
19. Hipátio de Éfeso (c. 530);
20. Juliano de Atramito (c. 530);
21. Elesbão, rei de Axum e santo (r. 493-531);
22. Cláudio de Turim (780-827);
23. Agobardo de Lyons (779-840);
24. Sahag Vanagan, monge calcedônio na Armênia (séc. IX);
25. Jocelino de Parthenay, o Grande, arcebispo de Bordeaux (r. 1060-1086);
26. Miguel o Sírio, patriarca siriaco de Antioquia (1126-1199);
27. Participantes do Concílio de Elvira (303/6);
28. Participantes do Concílio de Hipona-Regius (393);

Autores com posturas claramente iconistas:
1. Gregório de Nissa (r. 373-378)
2. Paulino de Nola (r. 410-431);
3. Gregório Magno (c. 600);
4. Libri Carolini e Teólogos da Corte Carolíngia (sécs. VIII e IX)
5. Participantes não-iconódulas do Sexto Concílio Geral (680-681)
6. Imperador Leão III, o "Isauro" (início do governo, antes de 727 AD)
7. Beda, o Venerável (673-735)
8. Alcuíno de Iorque (735-804)

Autores que provavelmente foram iconódulas:
1. João de Salônica (c. 680-690);

Fica extremamente claro que a iconodulia — a quem o Victor é ambiguo e receoso demais para levantar condenação — é uma inovação do século VIII, ao passo que a iconia se mostra no último quartel do século IV (375-400). No período ante-niceno e niceno todos os Pais da Igreja eram aniconistas, com o iconismo não-iconódula surgindo nas últimas décadas do século IV e bolsões de iconodulia no sétimo e oitavo (sempre em regiões de maior influência bizantina). 


É necessariamente isto que o consenso acadêmico secular já demonstrou: a Igreja Antiga era anicônica. Como bem sintetiza Ersnt Kitizinger:

"Quando, no início do século IV, a arte cristã tornou-se objeto de comentários mais articulados, estes eram a princípio ou de alguma forma restritivos. Não foi antes da segunda metade do quarto século que algum escritor começou a falar da arte pictórica cristã em termos positivos. Ainda assim, era uma questão com referências fugazes ao invés de uma defesa sistemática [...] Estas justificativas das imagens cristãs como foram tentadas durante a segunda metade do século IV baseava-se exclusivamente em sua utilidade como ferramentas educacionais, particularmente para os analfabetos." (KITZINGER, Ernst. The Cult of Images in the Age before Iconoclasm. Dumbarton Oaks Papers, Vol. 8, (1954). p. 87.)

Mas como autores seculares poderiam ser simplesmente ejetados sem qualquer razão decente, citaremos o luterano Johann Karl Ludwig Gieseler:

"A aversão a pinturas cessou no século IV. Eles [os cristãos] permitiram não somente a semelhança dos imperadores, mas também a de outros homens distintos. Por outro lado, ainda se considerava como prática pagã representar objetos de culto por pinturas. Primeiramente, passaram a se permitir nas igrejas representações alegóricas das sagradas doutrinas, e então pinturas das histórias das Sagradas Escrituras e da história dos mártires. A primeira dessas instâncias no Oriente são mencionadas por Gregório de Nissa, no Ocidente por Paulino de Nola (409-431 AD). Essas pinturas não tinham sido feitas para culto, mas apenas para instrução e estímulo [...] Sob Leão Magno, encontramos a primeira pintura de Cristo numa igreja romanista" (GIESELER. A Text-Book of Church History, vol. 1, p. 426-428.)

Podemos relembrar alguns nomes que confirmam ou afirmam esse consenso acadêmico: o luterano alemão Georg Hans Thummel; o bizantinista espanhol Juan Signes de Codoner, a canadense Caecilia Davis-Weyer, o alemão Theodore Klauser, o francês Pierre Prigent, os americanos Leslie Brubaker e Haldon etc.

Na verdade, mesmo autores iconódulas como John Henry Newman, o padre ortodoxo Steve Bigham, o bispo ortodoxo Kallistos Ware, o Monsenhor Urbano Zilles e muitos outros afirmam a existência de aniconismo primitivo ou pelo menos afirmam que o consenso acadêmico gira em torno do mesmo.

O golpe final, porém, vêm de uma figura mais querida aos luteranos: Martinho Chemnitz, o escolástico luterano que, no Exame do Concílio de Trento, repudia o Segundo Concílio de Niceia (787) e afirma que os primeiros cristãos eram anicônicos:

"Eles são incapazes de mostrar testemunhos confiáveis de verdadeira antiguidade que mostre a existência de imagens nas igrejas dos cristãos nos primeiros trezentos anos; pois mostramos acima o oposto. Mas, uma vez que esse sínodo finge ser esta uma tradição apostólica e um antiguíssimo costume, isto é, recebido desde os tempos de Cristo e dos apóstolos, ele se compele a aceitar testemunhos forjados, fábulas e mentiras para prová-lo. " (MARTIN CHEMNITZ, Exame do Concílio de Trento, tomo IV. Apple Books, p. 351-352.)

Um escolástico luterano respeitado pelo Instituto Areté está simplesmente repetindo o que nós e os outros protestantes dizem há anos e o autor da página simplesmente ignorou. Mas essa exposição de fatos levou em conta quem eramos, não o que falamos. E é curioso a forma como o Instituto Areté e muitos luteranos na internet são capazes de aceitar acriticamente qualquer coisa que um outro luterano escreva, desde de que a mesma não pareça calvinista ou evangelical.

 O Dr. Victor poderia ser mais honesto com seus leitores se, ao menos, tivesse franqueza do Chenmitz, que tenta conciliar o aniconismo primitivo com o adiaforo luterano que o Instituto Areté perverte com frequência, e não fizesse uso de Niceia II (a quem Chemnitz chama de pseudo-sínodo) como argumento contra os aniconistas.

“O que foi dito até agora diz respeito ao uso histórico das imagens, que por si só, se permanecer dentro dos limites históricos, não pode ser criticado e condenado, como foi mostrado anteriormente. Ainda assim, gostaria de realçar esses pontos dos atos deste concílio, a fim de que o leitor possa considerar quão ignorantes, ineptas e vazias foram as ações deste sínodo, sobre como eles construíram argumentos imaginários, estranhos e falsificados ..." (Ibid, p. 367-368.)

Quanto às referências dos autores aniconistas e iconistas, boa parte deles já foi tratado nesta página, no artigo do Banzoli e nos artigos do Bruno Lima. Não farei comentários extensos sobre os mesmos para poupar o tempo do leitor e pelo fato disto ter sido o dever de casa que o Victor deveria ter feito antes de ter elaborado um texto tão prepotente.


UMA ANÁLISE DAS CITAÇÕES PATRÍSTICAS TRAZIDAS


 

A passagem traz as citações do Papa Gregório Magno, Tertuliano, Cirilo, Agostinho, Crisóstomo, Basílio, Eusébio, Gregório e Nauclerus. Creio ser auto-evidente o porque de não precisar tratar do cronista bizantino do século VI, então podemos fazer uma síntese de Gregório Magno: conforme já explicado em outros artigos, Gregório Magno trata imagens como adiaforos; elas podem, se a congregação quiser, ser postas nas igrejas.

As similaridades com o luteranismo acabam quando não existe permissão ou instrução de se possuí-las de forma privada. Outra distinção reside no seu uso: sollummodo ad instruendas nescetium colocatum. Isto é, imagens são postas nas igrejas apenas para a instrução de analfabetos incapazes de ler a bíblia. Elas não servem para apreciação estética (a única e razão real para o Dr. Gomes querê-las), nem para memória, nem nada do gênero. E embora Gregório seja contra o iconoclasmo das mesmas na ocasião de seu culto, tanto Chenmitz quanto Lutero de forma ou outra davam graus maiores ou menores de aprovação à destruição mediante a prática da iconodulia; então até nisso os luteranos históricos se distinguem de Gregório, ao passo que curiosamente se aproximam do bispo Sereno de Marselhas, que é aquele criticado na carta.

A defesa de Gerhard sobre imagens parece ser pesadamente influênciada por aquilo que os escolásticos medievais, a partir do século XII, defenderam sobre o assunto. O motivo é simples: os erros de Gerhard são os mesmos de João Al-Mansur ("Damasceno"), embora eu me ausente de atribuir a desonestidade do adorador de pau de Damasco ao teólogo luterano.

Gernard não faz uso de nenhum dos argumentos de Damasceno, embora faça uso de parte da florilegia dos Três Tratados, juntamente com duas referências latinas que não podem ser encontradas nos mesmos (que eu tive o trabalho de checar nos originais pelo Patrologia Graeca). O formato das citações e o frequente recurso a autores medievais indica que o Gerhard usou citações das citações das citações, sem aparentemente qualquer cuidado em checar os autores citados.

Qual o erro, ou a desonestidade, de Damasceno? Basicamente, pegar todas as referências onde a palavra "imagem" aparecia e tratá-la como "um autentiquíssimo testemunho histórico" (sic). Quando a palavra imagem não aparecia, qualquer coisa que pudesse ser isolada a dar a entender uma imagem era utilizada como referência. Esse é o caso com Cirilo, que em nenhum momento fala de ícones. Nas outras, são textos descontextulizados onde imagens são descritas de forma crítica ou não-comentada: é o caso das demais. A referência usada de Agostinho, de acordo com o pastor luterano Gieseler e com a Dra. Davis-Weyer, é claramente pejorativa às imagens mencionadas na passagem, bastando observar o texto original (nenhum dos dois checou). Tertuliano é ainda mais crítico dessas imagens profanas (este é o nome dado aos ícones dos icones) nos cálices; mas de novo, bastava checar no contexto. E de que ornamentos Basílio se refere? Uma dica: se fossem imagens, o autor teria mencionado. 

Em síntese, o Victor Gomes foi incapaz de checar as referências do enxerto que citou, assim como o Gerhard. Mas o Gerhard não tinha acesso à internet, o Victor tem; e diferentemente do escolástico, que tenta manter o tom de adiaforo do uso de imagens no Luteranismo, o Instituto afirma: 

"Como afirmei anteriormente, não posto este texto para tentar convencer iconoclastas e afins de seus respectivos posicionamentos. Não creio que argumentos racionais seriam capazes de fazê-lo. A atitude iconoclasta possui raízes espirituais que a mente desconhece. Porém, o texto acima prova-nos cabalmente que (1) Luteranos defendem o uso de imagens de Cristo e dos Santos, é isso que Gerhard afirma com todas as letras; (2) fazendo isso, Luteranos seguem um consenso da Igreja Antiga“. É inútil citar vozes isoladas aqui e ali na antiguidade para defender o aniconismo. O número dos Santos Pais que aprovam o uso das imagens é gigantesco, como Gerhard cita: Tertuliano, Cirilo, Agostinho, Crisóstomo, Basílio, Eusébio, Gregório, etc. Não bastasse isso, também temos Nicéia II, que condena a heresia iconoclasta. E (3) Luteranos defendem o uso de imagens, não apenas pela liberdade cristã, mas também pelos benefícios que tal prática traz para a Igreja e para a sociedade como um todo. Remover a arte sacra é remover o próprio Cristo da arte – é abraçar um secularismo travestido de piedade."

Com alegações confiantes e o desprezo de seus irmãos protestantes, o mínimo que se espera é que o Dr. Victor saiba fazer pesquisa. Aqui cabem alguns pontos finais: 

1) Porque ele afirma que a Iconoclastia é heresia se as Confisssões Luteranas não condenam o Aniconismo ou a Iconoclastia (que pode ser feita por iconistas, como os luteranos bem fizeram) como heresias? Considerando a forma como a pagina milita contra ou despreza influências protestantes na sua religião se valendo de confessionalismo, esses duplos padrões são extremamente hipócritas, mas da para ir além: nem Lutero, nem Chemnitz e nenhum autor histórico aos quais tenho notícia consideram iconoclastia como heresia; então de onde veio essa atribuição, senão do papismo?

2) Será que os luteranos na Escandinávia, que cobriram a iconografia de muitas de suas igrejas com cal (razão pela qual elas foram ironicamente preservadas pela ação do tempo, como ocorreu na Inglaterra), não sabiam que estavam abraçando o secularismo, sendo hereges e privando a Igreja de inúmeros benefícios?

3) Se iconoclastas são incapazes de usar a lógica porque o Dr. Victor Gomes, o rev. Daniel Branco, o Bruno Malaquias e basicamente todos os militantes luteranos que conheço fogem de debates francos sobre a validade do uso de imagens? E porque esses mesmos luteranos amam se lançar contra irmãos mais ignorantes, a quem eles podem destilar superioridade? Não é só desonesto, é uma constatação completamente dissimulada.

4) Eu não preciso dizer quem possui as vozes isoladas, e não somente isoladas, como tardias. Para alguém que é protestante e trabalha com Patrística, não saber do peso disso mostra uma grande impropriedade na patrologia, e desconhecimento na forma como a própria religião tratou o processo de corrupção doutrinária na Antiguidade.

 5) O fato do autor estar ciente do termo "aniconismo" implica que ele não é exatamente ignorante do estado da questão, então porque manipular a verdade desta forma?

Para resumir minha posição, antes e apesar das difamações sobre a minha pessoa: não sou anti-luterano, não odeio luteranos, os vejo como irmãos protestantes apesar das maçãs podres do neo-sectarismo que não representa a religião. Eu participei de projetos evangelistas com luteranos nos EUA e eu entendo uma tradição protestante querer se provar mais certa que as outras; mas não pelo viês sectário, cripto-católico (entenda aqui como sincretismo papista e ortodoxo) de páginas como o Instituto Areté. Se vocês querem provar que estão mais certos que nós, aprendam que isso é recíproco, mas aprendam a fazê-lo com irmandade; algo que parece estar em falta entre sectários que querem os benefícios de serem protestantes, mas desprezam essa união no fundo, não deixando transparecer isso por puro alpinismo teológico.

Considerando a forma confusa, sincrética e anti-protestante de uma massa de luteranos de internet, eu seriamente repenso se continuaria a discipular ex-católicos a entrar em um caminho tão terrível por puro ecumenismo não-respondido: é como dar uma pedra de crack para um ex-alcoólatra.


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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