Como o Dragão de São Jorge confirma a Sola Scriptura?

 


No calendário litúrgico da Igreja Romana, o dia de 23 de abril é marcado pela comemoração da vida de um dos santos mais famosos de toda a Idade Média. O fato da sua iconografia e hagiografia retratá-lo como um matador de dragões é algo recebido com grande indiferença à atual sensibilidade religiosa (ou irreligiosa) de papistas e não-papistas. Porém, o caso de São Jorge implica em muito mais: se a Igreja afirma que este santo matou dragões, conforme a hagiografia afirma e a Tradição confirma, então as religiões romana e bizantina têm de arcar com todo o ônus que se deriva disso. Este se provará um improvável calcanhar de Aquiles.


UM SÍMBOLO?


Quando a tradição conta a respeito de São Jorge como um valente cavaleiro da Capadócia Romana que salvou uma cidade de um dragão feroz, a primeira coisa que qualquer pessoa sã nota é justamente o elemento "dragão" na narrativa. A grossa maioria das pessoas hoje não acredita em dragões, a maioria dos católicos também não acredita em dragões. Como raios uma criatura que nunca existiu poderia ter sido combatida por santo-soldado? A explicação dada por papistas se divide em duas linhas: I) o dragão é um símbolo; II) um réptil existente foi interpretado erroneamente como um dragão.
 
São duas explicações convenientes que são geralmente aceitas para essa contradição. Na verdade, observadores mais atentos notarão não só que o mito é geralmente interpretado desta forma, mas que existe uma tendência quase-generalizada para omitir esse aspecto da vida do santo de forma a torná-la algo completamente cosmético à sua história; se ninguém fala muito disso, menos consternação será causada dentro e fora por aquilo que pode ser facilmente tomado como uma história mitológica de uma fé mitológica. É exatamente o tipo de situação que se busca evitar. Numa era onde críticos estão bastante dispostos a encontrar contradições da religião cristã com a ciência e a arqueologia, parece bom anestesiar controvérsias desse gênero.
 
Mas será que é assim? O dragão na história de São Jorge é realmente um símbolo ou um réptil que foi mal interpretado como um dragão? Uma consulta à Tradição Romana prova justamente o contrário. 

Nenhuma hagiografia católica chega perto do prestígio desfrutado pela Legenda Sanctorum do bem-aventurado Jacopo de Varagine (1230 -1298), arcebispo de Gênova, também conhecida como Lenda Áurea ou Lenda Dourada. Este massivo compilado documental da vida dos santos não só foi um dos livros mais populares da Idade Média, mas foi decisivo no próprio processo de beatificação de Jacopo. A resposta para a interpretação do dragão deve estar contida no próprio documento, uma vez que ele compila fielmente a Tradição Católica e que nunca recebeu qualquer censura magisterial sobre a natureza de seu conteúdo.

"Aqui segue a Vida do mátir São Jorge

São Jorge era um cavaleiro nascido na Capadócia. Certa vez, ele chegou à província da Líbia, a uma cidade que se chama Silene. E ao lado desta cidade havia uma estanha ou um lago como o mar, onde estava um dragão que envenenou todo o país. E certa vez o povo se reuniu para matá-lo e, quando o viram, fugiram. Quando o dragão chegava para perto da cidade, ele envenenava o povo com seu hálito, e por isso o povo da cidade dava a ele, todos os dias, duas ovelhas para alimentá-lo, esperando que assim ele não causassem nenhum mal às pessoas. Quando as ovelhas falharam, passaram a levar um homem e uma ovelha. Então, uma lei foi feita na cidade para que se escolhessem crianças e jovens do povo daquela cidade por meio de sorteios; de forma que, se alguém fosse sorteado, ele deveria ser entregue [ao dragão], fosse ele nobre ou pobre. Isto se procedeu e muitos deles foram entregues, de tal forma que a sorte caiu sobre a filha do próprio rei. Por conta disto, o rei se arrependeu e disse ao povo: 'Pelo amor dos deuses, levem ouro, prata e tudo o que eu tenho, mas me deixe ficar com a minha filha'. O povo respondeu: 'Como senhor? Vós fizestes e ordenastes a lei e nossos filhos já morreram, ainda assim queres fazer o contrário? Sua filha será dada, ou então vamos queimar você e sua casa.'

Quando o rei viu que não poderia mais fazer nada, ele começou a chorar, e disse a sua filha: 'nunca conhecerei teus esposos'. Então ele voltou ao povo e exigiu oito dias de trégua, e eles lhe concederam. E quando os oito dias se passaram, eles vieram ao rei e disseram: 'Vês que a cidade perece?'. Então o rei vestiu sua filha como se ela fosse ser tomada em casamento, a abraçou, beijou e deu sua bênção, depois a levou até o lugar onde o dragão estava.

Quando ela estava lá, São Jorge passou, e quando viu a senhora questionou à senhora o que ela fazia ali. Ela disse: 'Vai-te jovem jovem, para que não pereças também'. Então disse ele: 'Dize-me o que aconteces e por que chorais e não duvidais de nada'. Quando ela percebeu que ele eventualmente descobriria, ela disse a ele como ela foi entregue ao dragão. Disse então S. Jorge: 'Formosa filha, não duvides de nada, pois te ajudarei em nome de Jesus Cristo'. Ela disse: 'Pelo amor de Deus, bom cavaleiro, siga seu caminho e não fique comigo, porque não podes me salvar'. Assim, enquanto eles falavam juntos, o dragão apareceu e veio correndo contra eles. São Jorge estava em seu cavalo, e puxou sua espada e enfeitou-a com o sinal da cruz, e cavalgou fortemente contra o dragão que veio em sua direção, e feriu-o com sua lança, machucou-o e jogou-o no chão. E depois disse à moça: 'Entregue-me o seu cinto, e amarre-o ao pescoço do dragão e não tenha medo'. Quando ela fez isso, o dragão a seguiu como se fosse uma besta mansa e afável. Então ela o conduziu para a cidade, e o povo fugiu pelas montanhas e vales, dizendo: 'Ai! ai de nós! estaremos todos mortos'. Então S. Jorge disse-lhes: 'Não duvideis de nada, sem mais, acredite em Deus, Jesus Cristo, e se batizem, então matarei o dragão' . Então o rei foi batizado junto de todo o seu povo. Então S. Jorge matou o dragão e cortou sua cabeça, e ordenou que ele fosse jogado no campo, e eles levaram quatro carroças com bois, que o tiraram da cidade.
 
Ali, 15 mil homens se barizaram, sem contar mulheres e crianças. O rei edificou uma igreja para Nossa Senhora e São Jorge, dentro da qual ainda existe uma fonte de água viva, que cura os enfermos que dela bebem. Depois disso, o rei ofereceu a S. George todo o dinheiro que podia ser contado, mas ele recusou tudo e ordenou que fosse dado aos pobres por amor de Deus; e ordenou ao rei quatro coisas, isto é, que ele deveria estar encarregado das igrejas, e que ele deveria honrar os sacerdotes e ouvir seu serviço diligentemente, e que ele deveria ter pena dos pobres, e depois, beijou o rei e partiu." [1]

É perfeitamente claro que a hagiografia de São Jorge relata que um dragão literal, que baforava veneno e ameaçava a cidade. Também é claro que essa cidade, após perder parte considerável de sua população, ainda tinha 15 mil habitantes em idade militar; considerando mulheres e crianças e o cálculo populacional médio do período medieval (cada núcleo familiar com cerca de um casal e dois filhos), a população desta cidade africana no período pós-crise tinha cerca de 60 mil habitantes, o que era uma marca imensa; para uma análise comparativa, a cidade de Edinburgo - a maior do reino da Escócia - tinha cerca de 12 mil habitantes em 1500 d.C., alcançando 15 mil - o número de batismandos homens da crônica - em 1650 d.C. Estamos falando de uma cidade 4x maior que a capital da Escócia em meados do século XVII! 
 
Mesmo numa cidade tão grande, que era a capital de um reino, nenhum exército, certamente equipado de escudos, armas e armaduras, cavalos e elefantes, foi capaz de fazer frente ... a um crocodilo! E que depois de capturado, 60 mil habitantes fugiram de medo ... de um crocodilo. E que depois de morto, o corpo decapitado e dividido desse crocodilo exigiu a tração de quatro carroças puxadas por tração bovina.
 
Sim, é exatamente isso que a tese liberal católica sugere: uma distorção da própria tradição em prol de consistência interna. Não me admira que essa narrativa só tenha sido aceita por conta da negligência das fontes da Igreja. É claro que os papistas de hoje iriam negar que São Jorge matou um dragão, mas as pessoas na Idade Média, credulas em toda sorte de supestição e milagres forjados, criam nisso literalmente. O relato é totalmente literal e sequer é o único caso envolvendo dragões na tradição católica. A Legenda Sanctorum registra pelo menos outras duas instâncias, todas envolvendo Papas e todas em Roma: uma, com um dragão que atormentou Roma durante o o século IV, sendo confrontado pelo Papa Silvestre I; outra durante a enchente do rio Tibre em 590 d.C., fazendo as ruas e casas de Roma serem invadidas com cobras e pelo menos um dragão, no papado de Gregório Magno. 
 
Ainda poderíamos mencionar por fora o apócrifo da Septuaginta em Daniel, a história de Bel e o Dragão, que é crida como canônica e parte do Depósito de Fé Católico. Em síntese, a Tradição Católica é uma religião de dragões clássicos: eles podem cuspir veneno ao invés de fogo, à moda dos dragões da mitologia germânica, mas é indubitável que não é algo que pode ser negado pelos adeptos dessa religião sem desembocar na conclusão óbvia de que um relato falso foi introduzido na religião, tornou-se tradição, teve a concordância do Magistério Eclesiástico e foi elemento de destaque na iconografia e culto por séculos até o racionalismo obrigar uma revisão da fé.

Enquanto católico romano, não é possível tomar São Jorge sem o dragão literal, não é possível negar a literalidade e veracidade do relato sem deixar vazar que a Igreja aderiu à mentira, que a canonização foi baseada ou influenciada grandemente por mentiras. Assim, nem seu auxílio sobrenatural foi capaz de descobrir algo que o racionalismo e a ciência fizeram, inicialmente à contra-gosto da crença tradicional. Se Roma não é capaz de distinguir verdades de erro no cotidiano religioso, com um culto tão generalizado, quiçá ela terá qualquer autoridade sobrenatural para questões doutrinárias. 

Papistas podem tentar desidratar a Tradição, colocar autoridade apenas no Magistério e apenas quando for conveniente, mas esse debate não segue as demandas deles: uma religião não precisa contradizer a própria lógica interna dela para ser falsa, basta que ela esteja errada por critérios objetivos e lógicos. Afinal, por esse critério o Protestantismo, que tem as Escrituras como a única fonte infalível de doutrina, seria virtualmente irrefutável. E eu também não vejo nenhum papista que não usa critérios gerais e objetivos para atacar outras religiões: o Xintoísmo por acreditar que a Terra é outra chapa plana sobre o lombo de um baiacu; o Hinduísmo por crer que a Terra é uma chapa plana sobre os lombos de quatro elefantes sobre um casco de tartaruga cósmica; o Islamismo por crer que Maomé se casou com uma criança; quiçá uma religião que acredita em um relato falso que ela mesma relativiza em tempos modernos.
 
 Se eles não são capazes de conservar corretamente nem a hagiografia, eles não vão ser capazes de conservar ensinos apostólicos orais e a doutrina primitiva nesses 2000 anos de História. Pode não ser o que eles dizem, afinal nenhuma religião admite que está errada, mas são os resultados falseáveis da própria religião. Se fossemos acreditar em premissas fideístas assim, de que umas tradições se corrompem e outras não, melhor seria ser judeu com 3000 anos de tradição inerrante, praticar magia kosher e acreditar que o templo de Salomão foi construído por gênios. Um fideísmo puro por outro, no fim das contas.

Se ainda restam dúvidas de que o dragão não eram um crocodilo, vale lembrar que os africanos caçavam crocodilos. E temos exemplos abundantes de crocodilos mumificados por egípcios desde os tempos da Idade do Bronze, onde homens os caçavam com lanças de metal macio e tangas de linho. Até mesmo eu, se armado de escudo e uma lança, conseguiria matar um crocodilo, porquê não um pai desesperado diante dos filhos à beira da morte?
 

 
É até curioso que, quando confrontados com mentes modernas, papistas vão criar diversas explicações para o mesmo problema: e todas elas contraditórias. Se o dragão era um animal comum, então ele não pode ser um símbolo. Se ele é um símbolo, ou ele é uma alegoria do paganismo ou uma alegoria do Diabo, ou de qualquer outra coisa, os símbolos propostos são todos auto-excludentes. Um comentário do Marcus Vinícius Marinho, fiel ortodoxo, resume bem a questão que a mentalidade modernista dos papistas tentam negar:

"Não temos como crer em simbolismo, os ortodoxos sequer mudaram para essa interpretação, porque ela obviamente é uma inovação. Ou São Jorge enfrentou um dragão, ou a história é falsa".

A Igreja não conserva a Tradição, nem mesmo aquela pós-apostólica. E é por isso que protestantes tem as Sagradas Escrituras como a sua única regra de fé, porque ela é a única que não se corrompe.

Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS:

[1] LENDA ÁUREA, Vol. 3, p. 58. Fordham University Sourcebook. Disponível em: <https://sourcebooks.fordham.edu/basis/goldenlegend/index.asp>, Acesso em 23 de abril de 2021.



 


Comentários

  1. Será mesmo que não existiam dragões? É uma pergunta interessante, porque florearam muito essas histórias, mas o termo dragão era algo usado por diversas culturas diferentes em tempos diferentes, alguns acreditam que dragões nada mais eram que dinossauros.

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