Filioque: a Impossibilidade da Infalibilidade Conciliar e o Triunfo da Sola Scriptura no Ocidente

 

Nas igrejas ocidentais, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, conforme exposto na figura.


O ano de 1054 d.C. é tradicionalmente tratado como o marco histórico do chamado Cisma do Oriente, quando as igrejas calcedônias bizantina e latina teriam se separado. Atualmente, porém, a Academia descarta a idéia de um cisma tendo o ano de 1054 como marco: ao invés disso, a separação entre Oriente Bizantino e Ocidente Latino nunca teria acontecido de forma oficial, mas num processo lento e informal; o que não descarta a realidade de uma divisão de facto, tendo o próprio Saque de Constantinopla (1204) na Quarta Cruzada como um ápice desta separação. 

Este processo de afastamento teológico e eclesiológico é bem antigo, e datas para seu início podem ser difíceis de traçar. Ainda assim, episódios que são decisivos na demonstração de um afastamento real incluem a Controvérsia do Filioque, no século IX. Ela diz respeito a procedência do Espírito Santo na teologia trinitária: enquanto os orientais permaneceram adeptos da fórmula antiga, afirmando que o Espírito Santo procede — somente — do Pai, a igreja ocidental alterou a fórmula para afirmar que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (ie. filioque).

Os protestantes, como herdeiros da igreja ocidental, seguem a fórmula da dupla procedência. A adesão a uma ou a outra fórmula não implica de forma alguma em um categórico de heresia; sendo a própria Controvérsia Filioque, na melhor das hipóteses, um ponto terciário de doutrina. Isto, porém, diz respeito a própria perspectiva protestante do assunto, mais especificamente.

Quando partimos da perspectiva dos romanistas e melquitas, toda questão se transforma. Isto porque, diferente dos protestantes, que seguem a Sola Scriptura como a sua única regra de fé e autoridade infalível, ambas as seitas têm um tripé de autoridade infalível: as Sagradas Escrituras, a Sagrada Tradição e o Sagrado Magistério. Enquanto Concílios Ecumênicos são por eles aceitos como Magistério Infalível, é condição de sobrevivência que nenhuma delas contradiga os próprios concílios, especialmente aqueles reconhecidos por ambas as facções.

A razão da controvérsia é bem simples: o credo antigo advém do próprio Concílio de Constantinopla (381), o Segundo Concílio Ecumênico, presidido por Gregório Naziazeno, santo de ambas as igrejas romana e bizantina:

"Creio no Espírito Santo,
Senhor que dá a vida,
e procede do Pai;
e com o Pai e o Filho
é adorado e glorificado:
Ele que falou pelos profetas." [1]

Para alguém que crê na infalibilidade conciliar, uma igreja que adota um credo alterado contradiz o mesmo concílio ao qual se credita infalibilidade. Como se isso não bastasse, existe um reforço à proibição da mudança do credo no Terceiro Concílio Ecumênico, o Concílio de Éfeso (431), como bem apontado pelos bizantinos:

"É ilegal para qualquer homem trazer, ou escrever, ou compor uma fé diferente como rival àquela estabelecida pelos santos Padres reunidos com o Espírito Santo em Nicéia." (CONCÍLIO DE ÉFESO, Cânon VII)

A proibição é clara, porque o Concílio têm a intenção de ser claro: o credo de Nicéia é imutável. Contudo, o Ocidente Medieval começou a aderir a uma outra formulação, que pudesse servir de forma mais eficiente no combate ao Arianismo, afirmando que o Espírito Santo têm procedência do Pai e do Filho.

Acredita-se que a primeira formulação em prol do filioque surgiu no Ocidente no Concílio de Toledo XI (675):

"Cremos também que o Espírito Santo, que é a terceira pessoa na Trindade, é Deus um e igual com Deus Pai e Filho, da mesma substância e também da mesma natureza; todavia, não é gerado nem criado, mas procede de ambos e é o Espírito de ambos. Este Espírito Santo não é, conforme a fé, nem gerado nem não gerado, para que não apareça que, chamando-o não gerado, estejamos falando de dois Pais e, chamando-o gerado, estejamos pregando dois Filhos; todavia ele não é chamado Espírito só do Pai, nem só do Filho, mas ao mesmo tempo do Pai e do Filho. Não procede, de fato, do Pai no Filho, nem procede do Filho para santificar a criação, mas mostra-se que ele procedeu de ambos, já que é reconhecido como amor ou santidade de ambos." [2]

Ainda assim, autores melquitas como o Hieromonge Enoque defendem que as atas originais do concílio foram posteriormente adulteradas para incluir a fórmula filioque em seu texto [3]; o que não é exatamente improvável, já que falsificações documentais são a conduta de excelência dos romanistas (como também é a conduta dos melquitas).

Curiosamente, foi entre os oponentes do culto às imagens que o Filioque ganhou popularidade no Ocidente. Apologistas melquitas, como Thomas Ross Valentine, enfatizam esta origem "heterodoxa" como evidência decisiva da corrupção doutrinária papista:

"O Libri Carolini, de Carlos Magno, emitido em resposta ao Sétimo Sínodo Ecumênico em 787, insistiu no uso do filioque (e se opôs aos ensinamentos do Sétimo Sínodo Ecumênico sobre os ícones). Os concílios locais realizados sob Carlos Magno defenderam o uso do filioque (Frankfurt, 794), decretaram que o filioque era necessário para a salvação (Aachen, 809) e solicitaram ao papa que autorizasse a adição do filioque ao Credo (Aachen, 810) embora eles já estivessem usando. (O papa Leão III recusou o pedido.)" [4]

E ainda:

"Da Espanha, o 'filioque' se espalhou aos francos (atual França). Foi adotado por Carlos Magno, que chegou ao ponto de acusar o Oriente de o ter omitido deliberadamente do antigo Credo. O Papa Leão III (795-816) interveio e proibiu quaisquer interpolações ou alterações no Credo Niceno. Ele ordenou que o credo, sem filioque, fosse gravado em latim e grego em duas placas de prata na parede da Igreja de São Pedro em Roma. No entanto, a adição foi mantida pelos francos. A disputa aumentou (muitos historiadores pensam que Carlos Magno usou o filioque na tentativa de justificar sua pretensão de ser imperador contra o imperador do Império Romano, localizado em Constantinopla) entre o Oriente e o Ocidente e foi o foco do concílio de Constantinopla que se reuniu em 879-880 d.C. Este concílio (reconhecido como o Oitavo Concílio Ecumênico pelos Cristãos Ortodoxos) reafirmou o credo de 381 d.C. e declarou todas e quaisquer adições ao credo inválidas. Os ensinamentos deste concílio foram confirmados pelos patriarcas da Antiga Roma (João VIII), Nova Roma [Constantinopla] (Fócio), Antioquia, Jerusalém e Alexandria e pelo Imperador Basílio I.

Ainda assim, o filioque continuou a ser usado pelos francos e até se espalhou para outras tribos germânicas. Eventualmente, até mesmo Roma começou a usar o filioque - na coroação de Henrique II em 1014 como imperador do chamado Sacro Império Romano. A maioria dos historiadores concorda que o papa (Bento VIII), devido à sua dependência da proteção militar do Sacro Império Romano, concordou com seu uso. Desde então, Roma continuou usando o filioque. Com o tempo, a crença no filioque se tornou dogma no Catolicismo Romano." [4]

De acordo com Ross, o primeiro concílio infalível da igreja ocidental a reconhecer a adição filioque foi Latrão IV (1215):

"O Pai não provém de ninguém, o Filho só do Pai, o Espírito Santo de modo igual de um e de outro." [4]

A partir deste ponto a defesa papista do fillioque e da sua não-contradição aos Concílio Magisteriais se consolidou como uma necessidade; e pela literatura da época sabemos de diversos debates entre teólogos latinos e gregos quanto a dupla procedência do Espírito Santo, tanto em termos concíliares quanto na própria razão teológica em si, já que ambas as posturas têm consequência na forma de ver a Trindade. E diga-se de passagem, a teologia trinitária dos melquitas tornou-se virtualmente subordinacionismo; dessa vez não com Cristo, mas com o Espírito Santo.


CONCLUSÃO


O credo foi mudado, isto é indiscutível. Mas essa vitória pontual dos melquitas se dá justamente contra os papistas: a Sola Scriptura é o único sistema teológico ocidental que sobrevive à alteração dos credos, justamente porque nós protestantes não aderimos ao conceito de Infalibilidade Conciliar e, por extensão, do Magistério Infalível. 

É claro que concílios podem acertar, e em muitos aspectos acertam, mas é justamente a sobriedade da nossa posição que nos permite sair intactos desta situação enquanto afirmamos a veracidade da dupla procedência. Já os papistas cientes deste fato não têm senão a conversão ao Protestantismo ou ao Melquitismo.

O triunfo dos último é temporário, porque os concílios são contraditórios e eventualmente isto se torna um fato desconfortável demais para ser ignorado. Um grande caso disso são os dois concílios divergentes de "Constantinopla IV", um reconhecido pela igreja papista como o Oitavo Concílio Ecumênico (869-870) e um reconhecido pelos melquitas e que rejeita o filioque, também chamado pelos latinos de Concílio Grego de Constantinopla IV (879-800); este têm valor ecumênico de facto, mas costuma ser omitido desta condição por conta dos delírios místicos dos orientais em sua numerologia de apenas "7 Concílios Ecumênicos".

Papistas querem que reconheçamos o concílio deles, e os melquitas o seu próprio; se o Magistério fosse realmente Infalível, seria esta a mesma coisa que afirmar de forma sacrílega que o Espírito Santo é esquizofrênico (jamais!). Além de ser extremamente conveniente o Cherrypicking de se escolher apenas os concílios que são concordantes à uma denominação específica, uní-los e evidenciar sua concordância "divina"; se trata de uma verdadeira infalibilidade de Schrodinger: o concílio é inspirado e infalível, mas só os que eu te digo que são.

Isto também serve como um alerta para os protestantes mais estúpidos e sincréticos: infalibilidade conciliar não é doutrina evangélica, deve-se ver os primeiros concílios como passíveis de erros e acertos. O Bruno Lima tem um texto bem esclarecedor sobre a falibilidade e contradições dos primeiros concílios ecumênicos, para quem ainda insistir em ceder estes critérios anti-bíblicos aos quatro primeiros (leia aqui).


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS:


[1] CREDO NICENO-CONSTANTINOPOLITANO. Paróquia São Geraldo. Disponível em: <
https://paroquiasaogeraldo.com.br/noticia/credo-niceno-constantinopolitano/>

[2] VALENTINE, Thomas R. A História do Filioque, trad. ROTTA, Felipe. Disponível em: <https://skemmata.blogspot.com/2019/09/a-historia-do-filioque-t-r-valentine.html>. Acesso em 17 de dezembro de 2020.

[3] HIEROMONGE ENOCH. Tampering with the AD 589 Acts of Toledo and the Filioque: A Centuries Old Slander. Disponível em: <http://www.stseraphimstjohnsandiego.org/St._Seraphim_of_Sarov_and_St._John_of_Kronstadt_Orthodox_Church/HISTORY/Entries/2017/7/13_Hieromonk_Enoch__Tampering_with_the_AD_589_Acts_of_Toledo_and_the_Filioque__A_Centuries_Old_Slander.html>. Acesso em 17 de dezembro de 2020.

[4] VALENTINE, ibid.



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