Hipátio de Éfeso (r. 531-538) e a Leniência Eclesiástica perante a Iconodulia Ascendente


Na conclusão do nosso artigo sobre Paulino, definimos três fases na evolução histórica da iconofilia. No início do século V, Paulino faz um "apelo aos oficiais da igreja para incorporar o povo ordinário no ensino cristão" [1] através de uma inovação: imagens com finalidade didática na sua igreja. A segunda fase, no fim do século VI (599-600 d.C.), é representada pela defesa do Papa Gregório I em manter imagens nas igrejas, ainda por finalidade exclusivamente didática e ainda para a instrução dos ignorantes: "sed ad instruendas solummodo mentes fuit nescientium collocatum" [2] (PL LXXVII). Por fim, no início do século VIII, pouco mais de cem anos depois de seu homônimo, o Papa Gregório II já defende abertamente o culto destas imagens [3].

Por mais que as três figuras representem fases bem definidas neste processo de corrupção doutrinária, o aspecto cronológico destas três fases se encaixa melhor dentro do escopo ocidental; ou melhor, da península itálica, já que sabemos que o resto da Europa Ocidental era bem mais retrógrado que seu vizinho peninsular, que mantinha intercâmbio religioso ad orientem, com o Império Bizantino.

Diferentemente da Itália, onde até se nota um aspecto mais conservador no processo de evolução doutrinária, o Oriente operava num cronograma ainda mais acelerado, mais caótico e até mais contraditório que seu equivalente ocidental.
 
A epístola do arcebispo Hipátio de Éfeso ao bispo Juliano de Atramytium, escrita durante o episcopado de Hipátio, na década de 530, é um documento valioso para a compreensão do estado imagético naquela região: seria Éfeso e Atramytium regiões anicônicas, icônicas ou iconódulas? Havia coexistência ou conflito entre as posições? Existe algo mais que pode ser extraído desse documento? Não só todas estas dúvidas serão sanadas, mas teremos em evidência uma revelação decisiva para entender como o culto às imagens ascende de superstição popular à doutrina de bispos e presbíteros da Igreja.


A EPÍSTOLA A JULIANO DE ATRAMYTIUM


Estamos na primeira metade do século sexto. Apesar das guerras constantes com a Pérsia, o Império Bizantino se encontra no seu auge, no governo do imperador Justiniano. A epístola do arcebispo de Éfeso a Juliano, um bispo em sua própria jurisdição, traz respostas ao questionamento do segundo sobre a presença de imagens em edifícios religiosos:

"Hipátio, arcebispo de Éfeso, sobre Inquéritos Diversos endereçados por Juliano, bispo de Atramytium. Livro Um, Capítulo Cinco, no que concerne objetos nos edifícios sagrados

Você diz que aqueles que colocam nos santuários aquilo que é reverenciado e cultuado, tanto na forma de pinturas como de esculturas, estão novamente perturbando a tradição divina. E você diz que os Ensinos [da Escritura] proíbem estas coisas, isto é, elas proíbem não somente fazer [esculturas], mas até mesmo as ordena que elas sejam destruídas quando estiverem sendo feitas ou quando já estiverem concluídas. 

Devemos examinar porque os Ensinos afirmam isso e, ao mesmo tempo, considerar com que propósito os objetos sagrados são moldados da maneira como eles [na verdade] são. Pois, na medida em que certas pessoas acreditavam que, como diz a Sagrada Escritura, 'a natureza divina é como ouro, ou prata, ou pedra, ou a impressão da arte do homem', tendo-as improvisado — de acordo com sua visão de deuses materiais — e 'cultuado o que haviam criado, em vez do Criador', é dito: 'Derrubem seus altares', 'cortem-nas', 'vocês devem queimar as imagens esculpidas dos deuses deles', 'guardai vossas almas (pois nenhuma figura vistes no dia em que o Senhor, em Horebe, falou convosco do meio do fogo), para que não sejais perniciosos, e façais para vós alguma imagem esculpida'. Pois nenhuma coisa existente é parecida, ou idêntica, ou igual à boa e divina Trindade, que transcende todas as coisas existentes e é a criadora e causa de todas as coisas existentes, pois é dito 'quem és como Tu?', e ouvimos os sacerdotes cantar 'quem será semelhante a Ti?'. 

 Mas, já que é assim, você diz: nós permitimos que as pinturas sejam cultuadas nos santuários, mas nós que muitas vezes proibimos esculturas em madeira e pedra não permitimos que estas [as esculturas] deixem de ser pecaminosas [ie. como pinturas], exceto nas portas.

No entanto, ó homem amado e santo, nós mantemos e registramos que, qualquer que seja a essência divina, ela não é semelhante a, ou idêntica a, ou igual a qualquer uma das coisas existentes. Nós ordenamos que o amor inexprimível e incompreensível de Deus por nós, homens, e os padrões sagrados estabelecidos pelos santos sejam celebrados nas escrituras sagradas, já que, no que nos diz respeito, não temos nenhum prazer em escultura ou pintura. Mas permitimos que as pessoas mais simples, por serem menos perfeitas, aprendam por meio da iniciação sobre essas coisas pelo [sentido da] visão, que é mais apropriado ao seu desenvolvimento natural, especialmente porque descobrimos que, muitas vezes e em muitos aspectos, mesmo os velhos e novos mandamentos divinos se rebaixam ao nível de pessoas mais fracas e de suas almas, por consideração à sua salvação. De fato, mesmo o santo sacerdote Moisés, que emitiu essas leis sob a orientação de Deus, coloca, no Santo dos Santos, imagens douradas dos querubins em obra batida. E em muitas outras instâncias nós vemos a sabedoria divina, por amor salvífico aos homens,  às vezes mitigar seu rigor para aquelas almas que ainda precisam de orientação. E por isso é dito que mesmo os magos foram conduzidos a Cristo por uma estrela do céu na época de Seu nascimento terrestre. [A Escritura] leva Israel para longe dos sacrifícios aos ídolos, mas permite que eles façam esses [sacrifícios] a Deus. E dá o nome de uma certa 'Rainha dos Céus', apesar não existir nenhum outro rei, exceto aquele que realmente é o rei dos reis no céu e no terra. Mas também menciona estrelas e usa a língua greco-pagã [bem como conceitos], chamando alguns deles de Pleiades, Ursa e Órion, embora não se rebaixe a qualquer um dos mitos e histórias contadas sobre eles pelos gregos, uma vez que se conhecem bem, cantando em louvor Àquele que 'conta a multidão das estrelas e dá nomes a todas elas'. Ensina-se a eles sobre as estrelas com ajuda da nomenclatura que eles mesmos conhecem e usam, dado que não aprenderam sobre elas [as estrelas] de outra forma.

Por estas razões, nós, também, permitimos até mesmo adornos materiais nos santuários. Não
porque acreditamos que Deus considera ouro, prata, vestimentas de seda e vasos cravejados de pedras preciosas veneráveis e sagrados, mas porque permitimos cada demanda dos fiéis para que eles sejam guiados e direcionados por elas à existência divina, de uma maneira que seja apropriada à estas [demandas], uma vez que nós pensamos que algumas pessoas são guiadas por estes [ouro, prata etc] em direção à beleza inteligível: do brilho abundante nos santuários para o brilho inteligível e imaterial.

E ainda assim alguns que refletiram sobre a vida superior sustentaram que 'em todo lugar' o culto espiritual deve ser oferecido a Deus e que as santas almas são os templos de Deus. Pois os Ensinos assim afirmam: 'Quero, pois, que os homens orem em todo o lugar, levantando mãos santas' e 'Bendiga o Senhor em todos os lugares de seu domínio', como também diz: 'assim diz o Senhor: o céu é o meu trono, e a terra o escabelo dos meus pés; que casa me edificaríeis vós? E qual seria o lugar do meu descanso? Não foi minha mão que fez todas estas coisas?' e o Altíssimo "não vive em templos construídos por mãos humanas" e "Por quem terei consideração, senão por aquele que é gentil e contrito, que treme da minha palavra?" e "Quem me ama observará o meu ensino, e eu o amarei, e eu e meu Pai viremos e viveremos com ele." Porque Paulo diz aos santos: “Vós sois o templo de Deus, e o espírito de Deus habita em vós”.

Não perturbamos, então, os [mandamentos] divinos com relação aos santuários, mas estendemos nossa mão de maneira mais adequada àqueles que ainda são um tanto imperfeitos. Ainda assim, não os deixamos sem instrução quanto ao mais perfeito [conhecimento], mas queremos que até mesmo eles saibam que o Ser Divino não é nem um pouco idêntico, igual ou similar à qualquer uma destas coisas existentes." [4]

A exposição é claríssima:

I) Tanto Hipátio quanto Juliano estão de acordo quanto ao fato de que imagens nas igrejas perturbam novamente a tradição divina. Como diz Paul J. Alexander, tradutor da carta: "Juliano diz que isto foi 'outra vez', porque havia sido feito uma primeira vez por pagãos" [5]. Isto é, o bispo identifica a prática como um distintivo pagão, que inconvenientemente adentrou nos templos cristãos. 

II) Juliano, mais receoso, estava disposto a ceder no assunto de imagens bidimensionais nas igrejas, mas não imagens esculpidas. Curiosamente, uma objeção que ainda persiste em igrejas greco-ortodoxas (iconódulas) e miafisistas (iconófilas). 

III) Hipátio afirma que nenhum elemento da Santíssima Trindade pode ser apropriadamente representado por imagens. Descaracterizando a ortopraxia das imagens de Cristo, como nota Alexander na exposição de Hipátio: "esta é uma referência ao famoso argumento, repetido por muitos teólogos desde os dias de Clemente de Alexandria e Orígenes, de que única e verdadeira imagem de Cristo é a alma virtuosa (justa, piedosa etc)" [6].

IV) O ensino apostólico, erudito e oficial realmente proíbe estas representações, ou seja, são estritamente anicônicos. Aliás, tanto Hipátio quanto Juliano são aniconistas [6], apesar de extremamente lenientes.

V) Todavia, mesmo existindo uma tradição e doutrina ortodoxa, Hipátio defendia que a rigidez das mesmas deveria ser afrouxada em prol "dos fiéis menos perfeitos". O que se traduzia não só nas imagens em igrejas, mas no próprio uso idolátrico delas (iconodulia).
 
VI) Dentro desta concessão especial, se entendia que somente cristãos ignorantes, imperfeitos e recém iniciados na fé seriam adeptos tanto da iconofilia quanto do culto às imagens. Logo, uma vez estes neófitos tivessem progredido na fé, era esperado que abandonassem esta dependência por imagens, assim como o seu uso idolátrico, entendendo o culto numa perspectiva espiritualizada e anicônica. Se os iconódulas vivessem naqueles tempos, seriam meramente tratados como neófitos cuja heterodoxia só era tolerada pela falta de maturidade espiritual e pela ignorância dos mesmos.

VII) Da mesma forma que o culto divino — espiritual por natureza — teve de abrir mão de seu aniconismo, vestes elaboradas, adereços luxuosos e outras belezas tiveram de ser introduzidas ao gosto dos fiéis, mostrando não só que a Igreja se permitiu virar refém das demandas populares, mas o próprio culto antigo e adequado aos cristãos maduros, nas palavras de um arcebispo do século VI, era Low Church (baixa-liturgia, mais austero).

VIII) Vestes e liturgias elaboradas não possuem qualquer fragmento ou indicativo de sacralidade, em contradição direta com o ensino das igrejas romana, melquita e demais igrejas orientais.

IX) Hipátio não conhecia qualquer doutrina sobre Maria ser Rainha dos Céus ou do Universo. Pelo contrário, ele diz que a única realeza no Céu é o próprio Deus. 


CONSIDERAÇÕES SOBRE A NEGLIGÊNCIA DOS MINISTROS DA IGREJA


A epístola do arcebispo de Éfeso é uma peça-chave no quebra-cabeças desta evolução doutrinária: o culto às imagens só ascendeu por conta da negligência dos ministros eclesiásticos que sabiam o que era certo, mas preferiram se acomodar às condições do Zeitgeist (Espírito do Tempo). O que Hipátio viu e tolerou como ignorância popular, mais tarde virou uma prática aceita como equivalente à ortodoxa; finalmente, a iconodulia virou a doutrina da Igreja, e aqueles que se levantassem contra ela eram chamados de inovadores ignorantes que não conheciam a doutrina "imutável" da Igreja de Cristo. 

É até curioso que esta epístola seja uns 70 anos mais nova que as epístolas de Gregório Magno a Sereno. Enquanto Hipátio estava diposto a tolerar até mesmo o uso idolátrico de imagens, nem Gregório nem Sereno permitiriam tal absurdo. Ambos, porém, divergiam na sua abordagem, Sereno cometia iconoclasmo para arrancar a idolatria do seio da igreja, já Gregório mantinha as imagens, buscando tentar  instruir os ignorantes do seu erro.

Estas três posturas distintas — gregoriana, hipática e serênica — definem três diferentes abordagens na constatação de idolatria na igreja: e embora apenas Sereno esteja agindo conforme o exemplo bíblico, é interessante ver o quão avançado estava a tolerância com o erro nas igrejas orientais. A postura de tolerância, na verdade, era um comportamento típico, como nota Alexander, ao comparar o estado doutrinário bizantino do século sexto com o oitavo:
 
"Qualquer culto generalizado dos ícones em formas extremas como mais tarde aparece nas apologias dos iconódulos pareceria perigoso e um uso indevido de uma prática que era tolerada apenas por consideração aos membros mais fracos da igreja." [7].
  
A ascenção iconódula, assim como outras heresias absorvidas no seio da Igreja, é fruto claro de uma negliência. Ao invés dos ministros de Deus ensinarem a doutrina ortodoxa ao povo (doutrina descendente, de cima para baixo), foi o povo, através de suas demandas e superstições populares, que forçou a Igreja a defender um novo ensino "ortodoxo" (doutrina ascendente, de baixo para cima). Não demorou muito para que novas gerações de bispos e presbíteros cressem na inovação popular como "doutrina antiga".


CONCLUSÃO
 
 
Hipátio, apesar de demonstrar um nível decente de conhecimento bíblico, deveria ter seguido as palavras do apóstolo Paulo: "Assim, pois, irmãos, permanecei firmes e guardei as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, por epístola nossa" (2 Tessalonicenses 2:15 ARA). A bíblia não diz: "acomodai o que temos ensinado de acordo com a imperfeição dos mais ignorantes", ela ensina a transmitir a perfeição para estes indivíduos mais indoutos. E se estes não quiserem seguir a igreja, entre confronto e acomodação, o primeiro é definitivamente a conduta escriturística.


Com Deus e armas vitoriosas,
Pedro Gaião.
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REFERÊNCIAS:
 
 
[1] MYERS, James. Truth, Images, and Nourishing the Ordinary: Representations of and Re-presentations for Ordinary in the Thought of Paulinus of Nola. NC Colloquium in Medieval and Early Modern Studies. p. 8.

[2] MIGNE, Jean Paul. Patrologia Latina, tomo LXXVII: Sanctus Gregorius Magnus. Paris: 1862. p. 1127-1128.

[3] MENDHAM, John. The Seventh General Council, the Second Council of Nicea, in which the worship of images was established: with copious notes from "Caroline Books", compiled by the order of Charlemagne for its confutation. Londres: 1850. p. XV-XVI.

[4] ALEXANDER, Paul J. Hypatius of Ephesus: a note on image worship in sixth century. The Harvard Theological Review, vol. 45, no. 3, julho de 1952. p. 178-181.

[5] ibid. p. 178.

[6] ibid. p. 180.

[7] ALEXANDER. ibid, p. 177.

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